sábado, julho 22, 2006

Gramsci: hegemonia e revolução

Texto publicado na Coleção Documentos - Série Teoria Política (IEA/USP), São Paulo, 1998


A noção de hegemonia desempenha o papel de um dos conceitos-chave no pensamento político de Antônio Gramsci. Embora atribuísse a paternidade do conceito a Lênin - que enfatizava na hegemonia o momento da coerção -, Gramsci enriquece esse conceito com uma interpretação original, acrescentando-lhe nova amplitude ao enfatizar na hegemonia o momento de direção cultural e ideológica. A hegemonia é, na imagem de Maria-Antonietta Macciocchi, a parte visível do iceberg sob a qual se encontra todo o corpo teórico-político gramsciano. Dito de outra forma, todo o pensamento político de Gramsci (a noção de bloco histórico, a distinção entre sociedade civil e sociedade política, o papel do intelectual como funcionário da superestrutura e a concepção do partido político como o Príncipe Moderno) articular-se-ia em torno do conceito de hegemonia. Embora não seja a única, esta seria, pois, sua mais importante contribuição para a teoria marxista.


A superestrutura do bloco histórico

Para Gramsci, a estrutura é a base sócio-econômica em que se assenta e pela qual é determinada, em última instância, a superestrutura político-ideológica. A estrutura seria formada pelo conjunto das forças materiais e do mundo da produção, ou seja, a totalidade das forças produtivas e as correspondentes relações de produção. A superestrutura abarcaria duas grandes esferas: a sociedade civil (ou ideologia) e a sociedade política (ou Estado). “Podemos distinguir” - afirma Gramsci - “dois grandes níveis na superestrutura, o que pode ser designado como sociedade civil, isto é, o conjunto dos organismos, habitualmente chamados internos e privados, e o da sociedade política ou Estado, correspondendo respectivamente à função de hegemonia que o grupo dirigente exerce sobre o conjunto social e à da dominação direta ou comando, que se expressa através do Estado e do poder jurídico.”

O vínculo orgânico e a unidade dialética entre a estrutura e a superestrutura engendram o bloco histórico, no qual “as forças materiais são o conteúdo e as ideologias a forma”. A sociedade civil englobaria a extensa rede de funções educativas e ideológicas; a sociedade política - o Estado em sentido estrito - exerceria o monopólio da força e da coerção. O Estado, agora em sentido amplo, seria formado pelo conjunto da sociedade civil e da sociedade política. “Pode-se dizer” - segundo Gramsci - “que o Estado é a sociedade política + a sociedade civil: uma hegemonia protegida pela coerção.”

A articulação orgânica do bloco histórico, isto é, a ligação entre estrutura e superestrutura, e, no interior da superestrutura, a ligação entre sociedade civil e sociedade política, é realizada pelos intelectuais. “Os intelectuais”- escreve Gramsci - “são os empregados do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político.” A mais original contribuição da análise gramsciana está, portanto, no papel que a sociedade civil desempenha no seio do bloco histórico. Enquanto Marx pensa a sociedade civil como o conjunto das relações econômicas, ou seja, como um momento da estrutura, Gramsci situa a sociedade civil na esfera da superestrutura ideológica. É esse novo enfoque que possibilita o estudo, em toda a sua complexidade, da noção de hegemonia.

A noção de hegemonia

Para Jean-Marc Piotte, Gramsci inspira-se em Croce e em Lênin para formular o conceito de hegemonia. De Croce, retira a significação cultural de hegemonia; de Lênin, a significação política. Ainda que identificando a noção de hegemonia com a ditadura do proletariado, o conceito gramsciano é mais amplo que o leninista, pois, como foi dito, engloba o aspecto de direção cultural e ideológica. Assim, à sociedade civil caberia a função de hegemonia e à sociedade política, a de dominação. À sociedade civil, competiria a formação do consenso; à sociedade política, o exercício da coerção.

Na noção de hegemonia gramsciana, a classe que monopoliza o poder deve ser a um tempo dirigente e dominante. Uma classe social é dirigente em relação às classes auxiliares ou aliadas, das quais obtém a adesão ativa, a participação e o consentimento para o exercício do poder. Uma classe é dominante em relação às classes opositoras, as quais deve neutralizar - quando e se necessário - pelo uso da coerção. “A supremacia de um grupo social”- afirma Gramsci - “manifesta-se de duas maneiras, como dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social é dominante em relação a grupos adversos, que ele busca liquidar ou mesmo submeter pela força das armas, e é dirigente em relação a grupos que lhe são próximos ou aliados.”

Cabe, pois, distinguir no interior do bloco histórico três tipos de grupos sociais. O primeiro, formado pela classe fundamental que exerce a função diretiva do sistema hegemônico; o segundo, integrado pelas classes auxiliares que, através do consenso, ampliam a base social da hegemonia; o terceiro, composto pelas classes subalternas que, em sendo opositoras, estão marginalizadas do sistema hegemônico.

Aos intelectuais cabe a função de cimentar a política de alianças, fornecendo a soldadura do bloco histórico. Primeiro, imprimindo à classe fundamental um elevado grau de homogeneidade e autoconsciência, isto é, transformando-a de classe em si em uma classe para si. Em seguida, assimilando ou suprimindo tanto os intelectuais tradicionais da antiga classe hegemônica quanto os intelectuais orgânicos das classes auxiliares e subalternas. Por fim, difundindo a ideologia da classe fundamental ao conjunto do organismo social – ou seja, universalizando-a – de forma a obter o consenso necessário ao funcionamento do sistema hegemônico. Enfocado segundo a ótica da classe operária, o partido revolucionário é o intelectual coletivo que, cumprindo as mesmas funções do intelectual orgânico, desenvolve nela a autoconsciência proletária. Dito de outra forma, o partido deve forjar um sistema de alianças que articule as classes subalternas em torno da classe operária, criando a base social necessária à formação de um novo bloco histórico.

Enfocando a questão do partido como centro de sua elaboração teórica, Gramsci realiza uma nova leitura de Maquiavel, repensando e atualizando o mito do Príncipe. Para Gramsci, as tarefas fundamentais do Príncipe moderno ultrapassam os limites do carisma de um herói individual - o Condottiero renascentista - e só podem ser realizadas por um partido político, capaz de forjar uma vontade coletiva nacional-popular e de edificar um novo tipo de Estado. A propósito, escreve Gramsci: “O Príncipe moderno, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoal real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo, um elemento de sociedade complexo no qual comece a concretizar-se uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente em ação. Esse organismo já foi dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político; a primeira célula na qual se resumem os germes de vontade coletiva que tendem a vir a ser universais e totais.” Caberia, pois, ao partido revolucionário - através da aliança entre a classe operária e as demais classes subalternas - criar um novo sistema hegemônico e assumir a direção da sociedade civil. Essa seria a condição preliminar e necessária para o enfrentamento final com a classe antagônica, de forma a arrebatar-lhe o domínio do Estado e organizar as bases de um novo bloco histórico.


Uma estratégia para o ocidente

A originalidade do conceito de hegemonia e sua importância na filosofia da praxis se explicitam na elaboração de diferentes estratégias para o Oriente (países semi-industrializados) e o Ocidente (países industrializados). Para tanto, Gramsci estabelece comparação entre a arte militar e a arte da política. Na guerra de movimento, a artilharia abre brechas nas linhas inimigas, pelas quais irrompe a infantaria e obtém uma vitória imediata e decisiva. Na guerra de posição, o equilíbrio de forças entre os antagonistas implica numa estratégia de desgaste e na perspectiva de uma vitória em longo prazo. Na arte da política, a guerra de movimento seria o ataque direto e frontal ao poder, do qual resultaria a conquista imediata do aparelho de Estado. A guerra de posição designaria, por sua vez, uma luta prolongada pela obtenção da hegemonia na sociedade civil como condição prévia para o domínio da sociedade política. As crises econômicas, à medida que enfraquecem e desorganizam momentaneamente as forças inimigas, desempenhariam no plano da política o papel da artilharia pesada na arte militar.

Na Rússia de 1917, os bolcheviques conquistaram o poder de assalto e puderam conservar o domínio do Estado à medida que a sociedade política ali era tudo e a sociedade civil não era nada. Por outras palavras, o domínio do aparelho de Estado possibilitou à classe operária estender em poucas semanas sua hegemonia ao campesinato e assumir o controle dos centros vitais e dos pontos estratégicos do país. “No Oriente”, - escreve Gramsci - “o Estado era tudo, a sociedade civil era primária e gelatinosa; no Ocidente, ao contrário, existia uma correlação eficaz entre o Estado e a sociedade civil, e a um tremor do Estado podia ver-se uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas a trincheira avançada, atrás da qual existia uma poderosa cadeia de fortalezas e casamatas (...)”

Dessa diferenciação fundamental entre Oriente e Ocidente - cujos exemplos extremos eram a Rússia de 1917 e a Itália de 1922 - Gramsci extrai importantes conclusões de ordem estratégica. Na Itália, contrariamente ao que sucedera na Rússia, a crise desorganizou a classe operária e culminou com a vitória do fascismo. Ali, o desenvolvimento do capitalismo industrial conduziu à democracia liberal-burguesa e engendrou uma sociedade civil forte, complexa e articulada, que possuía a uma correlação eficaz com o Estado. Como decorrência dessa correlação eficaz, a debilidade conjuntural do Estado em 1920-22 foi compensada pelo surgimento, na esfera da sociedade civil, de grupos para-militares que - apoiados pelos capitalistas, latifundiários e camadas médias - garantiram pela força a sobrevivência do Estado.

A primazia da sociedade civil sobre o Estado nos países capitalistas avançados leva Gramsci a traçar para o Ocidente uma estratégia distinta da que fora empregada no Oriente. Dito de outra forma, no Ocidente a guerra de movimento deveria ceder lugar à guerra de posição. A luta pela conquista de uma incontestável hegemonia sobre a sociedade civil, a obtenção de um vigoroso apoio das classes subalternas, a formação de uma ampla rede de alianças políticas e a construção de um novo bloco histórico que oferecesse uma clara alternativa ao bloco histórico dominante, todas essas condições deveriam necessariamente proceder a conquista do aparelho de Estado. Em síntese, nos países capitalistas avançados do Ocidente, onde existia um equilíbrio adequado entre sociedade civil e sociedade política, para uma nova classe ascender ao poder era imprescindível - primeiro - tornar-se dirigente na sociedade civil, para só depois de conquistada essa direção moral e intelectual tornar-se - finalmente - dominante no Estado.

Em 1928, quando do julgamento político de Gramsci, o representante do Estado fascista lançou sobre o acusado político o seguinte anátema: “É preciso impedir esse cérebro de pensar por vinte anos”. Em 1937, após uma década de martírio nas masmorras do fascismo, morria Antônio Gramsci. Em 2006, quase setenta anos após sua morte, os Cadernos do Cárcere acrescentam uma nova e grandiosa dimensão à estatura de Gramsci como ser humano, personagem histórico, teórico marxista e dirigente político da classe operária. Quanto à memória de seu verdugo, não ficou nem poeira daquele esbirro do fascismo e seu nome perdeu-se para sempre nos esgotos da História. Antônio Gramsci, porém, imortalizado nos Quaderni, viverá pela eternidade ou, para usar suas próprias palavras, für ewig.

2 comentários:

Rafaella disse...

Meu amigo, meus parabens. Sucinta e didatica explanacao acerca do mais sobrio marxista que eu ja conheci...

Francisco Mattos disse...

Companheiro Leonel,
Quero parabenizá-lo pela clara, didática e simples (sem ser simplória) explicação sobre conceitos gramscianos - estrutura e superestrutura-, que, em outros escritos apresentam-se extremamente confusos.
Saudações gramscistas!