domingo, julho 30, 2006

Por um projeto nacional estratégico

Transcrição de participação no I Simpósio Internacional de Administração e Marketing e III Congresso de Administração da ESPM, em 26/07/2006.
Confesso que quando recebi o gentil convite para participar deste evento, sem dúvida de transcendental importância, eu vacilei um pouco. Diria que a primeira impressão é de que eu seria um “estranho no ninho”. O que faria um cientista político no meio de economistas, administradores, pessoas especializadas em propaganda e marketing e também autoridades do comércio internacional? O que eu poderia dizer sobre isso? Lembrei-me então de uma grande pensadora política, Rosa de Luxemburgo, que diz que a liberdade é sempre a liberdade do outro. Daquele que não pensa, não sente e não age como eu. Senão, não é liberdade. A primeira impressão que se tem de um cientista político, é a de que se trata de um homem de esquerda, polêmico, com posturas de oposição. Mas nós tivemos um presidente que dizia que o consenso é totalitário. Fernando Henrique Cardoso dizia isso. A divergência é democrática, e é nesse sentido que me sinto confiante de dizer algumas coisas que talvez, aqui, possam causar impacto. Alguma impressão diferente.

Começaria por coisas elementares: vivemos em um planeta de 500 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 350 milhões são mares e oceanos, e apenas 150 milhões são ilhas e continentes, ou seja, 30% do planeta Terra. Se há a intenção de inserir o Brasil, em termos geopolíticos e estratégicos, no sistema internacional - do pós-guerra fria, em particular –, olhamos o mapa mundi e vemos que o planeta é dividido pela linha do Equador. Se vocês observarem um pouco, vão verificar que praticamente 75% das massas do planeta estão situadas no Hemisfério Norte, é o hemisfério continental. Apenas 25% das terras do nosso globo estão situadas no Hemisfério Sul. A maior parte do continente americano, africano e a eurásia estão no Hemisfério Norte. E, no Sul, o Hemisfério Oceânico, onde percebemos uma projeção da maior parte da América do Sul, uma parte do cone sul do continente africano, a Indonésia e a Oceania. Assim, se quisermos pensar o Brasil, temos que partir de fatos de uma realidade geográfica que é dada historicamente.

Pessoa dotada de certa competência, que já era General aos 24 anos e Imperador aos 34, Napoleão Bonaparte assegurava que “a política dos Estados está na sua geografia”. É a partir desse lugar que vamos pensar o Brasil. Quando vinculamos a questão geográfica à questão demográfica percebemos que 85% da população mundial (6 bilhões de habitantes) está concentrada no Hemisfério Norte. Na América no Norte, Europa, Oriente Médio, Japão, China e Índia. Apenas 15% da população está localizada no Hemisfério Sul, entre Brasil e Indonésia.

Se levarmos em conta que no sistema internacional temos centros de poder (uso um conceito multifacetado – acho que a melhor definição de poder é aquela dada por Hobbes, pensador do Século XVII, no Leviatã, que afirma que o poder é império enquanto poder militar, é domínio enquanto poder econômico e é religioso enquanto poder ideológico. Ou seja, tem poder quem controla meios de coerção, meios de produção e meios de comunicação: isso é poder!). É possível observar que historicamente temos três centros de poder mundial e todos se situam também no Hemisfério Norte. Da região dos grandes lagos até o Atlântico, o centro de poder está nos EUA e Canadá, e figura o primeiro grande centro do poder mundial. O segundo centro poderemos situar na extremidade ocidental da Eurásia, em torno da França, Alemanha, Inglaterra e Itália. O terceiro está situado no extremo oriente, no Pacífico, formado pelo Japão, China, Coréia do Sul e Taiwan. Não há nenhum centro de poder mundial no Hemisfério Sul.

Se pensarmos em termos econômicos (vamos levar em conta o produto bruto, grosso modo, de 30 trilhões de dólares), 80% do PIB mundial estão no Hemisfério Norte e apenas 20% no hemisfério sul. Se vocês pensam num comércio mundial mais ou menos de 7 trilhões de dólares, 80% desse comércio é Norte-Norte, e apenas 20% desse comércio é Norte-Sul. Consequentemente, nós temos assimetrias configuradas. A questão é: como nos inserimos nessas assimetrias?

Vamos olhar para o Brasil. Eu diria que há geograficamente uma posição sul-hemisférica, periférica e excêntrica aos grandes centros do poder mundial. Temos um produto bruto em torno de 1 trilhão de dólares, isto significa 2 ou 3% do PIB mundial. Nossas exportações cresceram para 118 ou 120 bilhões de dólares, o que significa em torno de 1,5% do comércio mundial. Cabe, então, perguntar: que país é esse, no qual estamos inseridos? O que queremos do Brasil para o século XXI? O que queremos de um país que tem 2% do produto bruto mundial e 1% do comércio internacional? Sem esquecer, entretanto, que é um país com produto interno bruto de 1 trilhão de dólares, o que não é nada desprezível: estamos entre o 10º e o 13º PIB do planeta.

Inevitavelmente, ao contrário do que houve na Argentina, nós conseguimos manter nossa grande realização do século XX, que é a manutenção e expansão de nossa base industrial, científica e tecnológica. Nós somos um país de industrialização hipertardia. Há países de industrialização precoce como Inglaterra, França e Estados Unidos; países de industrialização tardia como Alemanha, Itália, Rússia e Japão; e o Brasil com industrialização hipertardia, que vai se dar apenas a partir da segunda década do século XX. Mas, de qualquer maneira, conseguimos formar uma base estrutural industrial, cientifica e tecnológica, que foi mantida, preservada e expandida.

Temos um espaço territorial de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, com projeção marítima no Atlântico Sul, projeção terrestre na América do Sul fazendo fronteira com todos os países, exceto Equador e Chile. Então possuímos fatores de poder: há território, população (que em 2025 estará em torno de 230 a 250 milhões de habitantes, e isso constitui o que os cientistas políticos chamam de “massa crítica”), espaço e posição. Nosso Estado é um sistema de normas, um sistema legal em que as normas estabelecem as regras e os limites da violência em exercício dentro do território. Temos também capacidade militar. No Brasil não há crise de Estado e tampouco de regime político. Para nós está bastante claro que no pós-guerra fria o conjunto da sociedade brasileira optou por um novo “pacto social”, expresso na Constituição que vige atualmente. Nesse pacto, o conjunto da sociedade, em sua diversidade, optou por viver dentro das “regras do jogo” de uma um regime democrático, uma democracia liberal representativa. Houve também a opção por uma economia de mercado.

Em termos de regime político, há dois extremos: em uma das pontas existe a anarquia, onde a sociedade não tem nenhum poder, onde não há governo, onde prevalece a tirania da maioria; na outra ponta existe o despotismo, o super-Estado leviatânico, onde predomina a tirania da minoria. A sociedade brasileira não optou nem pela tirania da maioria, nem pelo despotismo da minoria, mas optou por um caminho intermediário que chamam de “anarquia ordenada”, um estado de direito! Temos uma Constituição que limita o poder dos governantes, portanto liberal. Mas também é democrática, porque distribui o poder para os governados. Então temos uma Constituição liberal-democrática. Quem viveu sob uma ordem autocrática sabe que uma Constituição é fundamental. Só percebemos o quanto é importante um Estado de direito, e principalmente um Estado de direito democrático, quando a gente o perde. Como no caso da empregada doméstica, quando ela vai embora é que eu percebo a falta que ela me faz!

Mas além dos direitos políticos e civis, estamos em uma era em que temos de pensar também nos direitos sociais. Não somente nos direitos individuais, mas também nos coletivos. O direito à educação, ao trabalho, a uma vida digna e civilizada. E aí nossa democracia está em falta. Fizemos uma transição democrática pacífica, tranqüila e civilizada ao preço de uma dívida social extremamente alta. E no contexto da democracia temos um compromisso com o resgate dessa dívida social. O Brasil não é um país pobre, mas injusto! Não é um país subdesenvolvido, é uma potência regional de tipo médio. O tamanho desse país é a metade da América do Sul. A população é a metade da população sul-americana. O PIB do Brasil é a metade do PIB sul-americano, portanto, esse país não é pobre. É um país extremamente injusto, fruto de uma herança da colônia e do império, do tempo da escravidão.

No que diz respeito à concentração e distribuição de renda, vejam nossa situação: os 20% mais pobres do Brasil têm uma renda média de 600 dólares por ano e os 20% mais ricos de 18.500 dólares por ano, ou seja, entre ambas as faixas há uma diferença de 30 vezes. No Japão, os 20% mais pobres têm uma renda média de 9 mil dólares por ano enquanto que os 20% mais ricos, 39.000 dólares por ano, isto é, a diferença entre as faixas é de pouco mais de 4 vezes. Na Alemanha, a diferença é de 6.600 para 38.000 dólares, 6 vezes. O mesmo ocorre nos EUA (onde por sua opção pelo neoliberalismo, se cortam os impostos para favorecer os ricos e se suprimem os gastos da previdência que poderiam beneficiar os pobres), a diferença é de 5.800 para 51.000 dólares, menos de 10 vezes. Então, o que fazer com o Brasil?

O que temos que fazer é criar um mercado interno mais amplo, com capacidade efetiva de consumo; temos que desenvolver políticas sociais que permitam melhor distribuição de renda, que reduzam o desemprego e combatam a exclusão social. Se queremos inserção internacional, temos que “arrumar a casa”, internamente.

Certamente isso não é tarefa de um partido ou de um governo, é tarefa de pelo menos uma geração. Para isto temos que formular um projeto nacional estratégico capaz de traduzir o que queremos do Brasil. O que ele vai ser quando crescer? Nós não temos, até agora, entre as nossas elites políticas, econômicas e intelectuais um consenso mínimo para a formulação de um projeto estratégico nacional. Como o Brasil é uma potência média, significa que até 2025 (2050, no máximo) o país terá certo tempo para se transformar em uma grande potência regional com projeção no Atlântico Sul e projeção continental na América do Sul, diversificando suas relações com o Hemisfério Norte. Nossa relação com os EUA não devem ser nem de alinhamento automático, nem de confrontação suicida, mas de certo distanciamento. Nem muito perto para criar intimidade em demasia, nem muito longe para que se crie uma situação de isolamento, de desconfiança. Temos que diversificar nossas relações em direção à União Européia e abrir mercados na Rússia, Japão, China e Índia. Também ampliar nossos negócios com o Oriente Médio.

Desse projeto nacional também deve fazer parte um plano para que se possa recriar o pacto social entre as elites que dominam o poder nesse país e o povo. E, uma vez estabelecido esse projeto, é necessário que haja vontade nacional para viabilizá-lo. Estou falando de coesão social, para que os ricos não sejam tão ricos que possam comprar o voto dos pobres e nem os pobres tão pobres que necessitem vender o seu voto para os ricos. Ou seja, uma coesão que implica em reformas políticas e sociais.

Mas não podemos deixar isso à livre soberania do mercado – esse mercado, supostamente auto-regulado, no qual, se o Estado for apenas um mal necessário e sem qualquer tipo de intervenção, vamos cair num “darwinismo social”. Se esse mercado for deixado ao sabor de suas regras “naturais”, os ricos ficarão mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, porque é isso o que está acontecendo há 500 anos nesse país. Também não podemos deixar o Estado tão reduzido, que não possa regular minimamente os direitos políticos, civis e principalmente os sociais, dando aos cidadãos menos favorecidos o direito de participação na vida econômica e política do país.

Até agora temos visto as coisas de cima para baixo, dos privilegiados em relação aos humilhados e ofendidos desse país: está na hora de mudar essa ordem. E a questão é: em que medida podemos mobilizar a sociedade, tendo em vista um projeto nacional que demandará no mínimo uma ou duas gerações?

Para terminar, quero dizer o seguinte: às vezes a gente diz algumas coisas e fica bem com as pessoas e mal com a própria consciência. Preferi dizer hoje algumas coisas que talvez possam me deixar mal com as pessoas, mas me deixam muito bem com minha própria consciência. Muito obrigado!


Questão proposta ao final da apresentação

Professor, em sua fala chama atenção a idéia de “plano nacional estratégico”. Acredito que o governo tenha um papel importante na defesa de um plano, mas que tipo de interesses externos o governo deveria priorizar nesse momento e como defendê-los? Na visão de algumas pessoas, na defesa de interesses político-geográficos, houve uma relação custo benefício que não foi saudável para a sociedade, o senhor concorda com isso?

Resposta

O Brasil é um Estado Federativo que consegue manter o monopólio da violência legítima em todo o espaço territorial. A segunda coisa é o regime político, que pode ser autocrático ou democrático. O autocrático pode ser totalitário ou autoritário; o democrático pode ser uma democracia representativa ou uma democracia direta ou participativa. Além disso, temos um sistema partidário, que pode ser uni-partidário, bi-partidário ou multipartidário, e temos um sistema eleitoral que pode ser majoritário ou proporcional. Portanto, temos aí um arcabouço político que se monta sobre aquilo que chamamos de sociedade civil, ou seja, o arcabouço é a esfera pública, e temos na sociedade civil a esfera privada, lugar das atividades econômicas. Essas atividades podem ser privadas (setor privado na economia, setor social e estatal na economia). Considerando que as coisas não são auto-evidentes, temos que pensar nisso tudo. Como assegurar que o país não tem vocação para exportação, quando há uma cultura histórica de exportação? Exportamos pau-brasil, açúcar, ouro, diamante, borracha e café. Nosso desenvolvimento sempre foi para exportar, ajudar e auxiliar a acumulação primitiva do capital e mundial. Onde a Inglaterra buscou capitais para fazer a revolução industrial? No ouro levado do Brasil, que foi para Portugal através do pacto colonial, e de Portugal para a Inglaterra, para pagamento de dívida externa. Esse ouro financiou a Revolução Industrial do século XVIII na Inglaterra. Globalização é uma coisa importante, mas mais importante ainda é discutir os termos em que se participa dela, porque alcançaremos uma época em que haverá muitos chapéus e poucas cabeças. Serão muitos globalizados e muito poucos globalizadores. Como vamos negociar nossa inserção nesse novo sistema internacional? Vai ser uma inserção assimétrica? Cabe a nós negociar os termos.

Existe uma acumulação histórica onde se cria uma indústria de bens de consumo no contexto da Primeira Guerra Mundial. Uma indústria de bens de capital no contexto da Segunda Guerra Mundial. E houve nova expansão econômica na época do Juscelino. No terceiro surto econômico na época do “milagre brasileiro” (regime militar) demoramos um século para criar uma base industrial, científica e tecnológica. Na Argentina, o ministro da Fazenda do regime militar sucateou em seis anos o desenvolvimento industrial argentino e, a partir de 1980, o país voltou a ser uma granja agro-exportadora, como foi até 1930. Então, é importante saber em que termos fica nossa inserção no mercado mundial, como ficam os subsídios – o tal livre comércio não vale para o mercado europeu, que subsidia com dezenas de bilhões de dólares sua agricultura? Não vale para o mercado americano, que com dezenas de bilhões de dólares subsidia sua agricultura? Não vale para o mercado japonês? Onde ficamos nós em termos de custo-benefício? Nós abrimos nosso mercado, mas quem abre o seu? Ou vamos permitir o sucateamento dentro do nosso parque industrial? Vamos discutir todas essas coisas porque o Brasil já ultrapassou a fase de país agro-exportador. Não é mais uma potência periférica, é uma potência média que tem condições de sentar e negociar os termos da inserção no mercado internacional.

Para isso, temos que ter um projeto. Mas não basta ser um projeto de intelectuais, que seja construído na economia. Deve haver consenso de como distribuiremos o bolo: ele será comido apenas por banqueiros? Trabalhamos todos, empresários, profissionais liberais, trabalhadores manuais para financiar o crescimento do capital financeiro nesse país, onde está o lucro da produção? Onde está o retorno do trabalho? Precisamos criar um pacto social que não seja jogo de soma zero, onde somente um ganha o tempo todo e eu perco todas às vezes, que interesse eu tenho em jogar um jogo desses? Temos que comprar outro tipo de jogo, redefinir as regras desse jogo. Jogar um jogo no qual você ganha por um lado, perde por outro e todos ganham, porque assim continuamos interessados em manter as regras. No qual não se vira a mesa, porque sempre acabamos ganhando.

A questão reside em conhecer nosso ordenamento jurídico, nosso Estado de direito, onde temos uma esfera de leis, onde o Estado diz o que deve ser feito. Um segundo ordenamento, onde o Estado proíbe. Uma terceira esfera, que é a facultativa, em que o Estado faculta e cabe ao cidadão fazer ou não fazer, de acordo com seu arbítrio, dentro dos limites da lei. Temos que reduzir essa esfera impositiva do Estado, aumentar a esfera facultativa que nos permite, independente do Estado, decidir, superar, procurar nossas convergências sem termos de recorrer a um juiz togado. Podemos acelerar esse mecanismo através de um processo de arbitragem, mediação e negociação. Podemos deixar que as coisas se acomodem segundo a lógica do mercado, aumentando a esfera facultativa e reduzindo a esfera de atividade dos Estados. Mas, todas às vezes em que a regra do jogo for exacerbada em função da necessidade de lucro máximo, sem ter em vista a necessidade de justiça social, temos que recorrer aos tribunais, e aí entra o papel do Estado como mediador. A regra geral é que nós consigamos resolver nossos problemas por via de arbitragem, mediação e negociação.

Não é possível viver com uma política de improviso, é preciso um projeto. Vamos baixar o juros? Vamos sentar e negociar. É preciso reformular o sistema tributário? Vamos rever os mecanismos de negociação. O que precisamos para isso? Partidos! Não há democracia sem partidos. Precisamos de sindicatos. A pessoa física não pode conversar com a pessoa jurídica e solicitar igualdade de condições. Os empresários precisam ter grêmios para que tenhamos dinamismo, equilíbrio, anarquia ordenada. Nem o despotismo da maioria, nem a tirania da minoria. Sou a favor da inserção do Brasil no processo de globalização, mas sou a favor de um projeto nacional que crie um mercado interno, de fato, porque hoje não há. Temos apenas 20 milhões de consumidores, em uma população de 180 milhões de pessoas. Temos que completar o processo de substituição de importações. Então vamos negociar com as multinacionais, com o capital internacional, mas vamos ver também os termos e modos de negociação. Para isso é preciso uma sociedade minimamente coesa, e isso não existe em um regime democrático que pode ser comparado a uma democracia grega, ateniense, de escravos, que exclui 50 milhões de pessoas da população desse país. Não podemos ter uma democracia de elites, a democracia como técnica de selecionar grupos governantes e, sim, uma democracia como valor universal. Esse valor universal significa incorporar os marginalizados e excluídos na participação dos benefícios da sociedade: saúde, educação, transporte, moradia, vida digna e civilizada. Direitos de qualquer ser humano.

quinta-feira, julho 27, 2006

O sistema internacional do “breve século xx”

Texto para a palestra apresentada na Escola de Sociologia e Política, em Setembro/2005

A virada do Milênio

Huntington (1999) criou o neologismo “unimultipolar” para descrever o sistema internacional surgido no pós-Guerra Fria, com a vitória dos Estados Unidos da América (EUA) sobre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Esse sistema unimultipolar é formado por uma superpotência global multidimensional (os EUA) e por várias grandes potências regionais (China, Rússia, Grã-Bretanha, França, índia, Alemanha e Japão).

Entretanto, a virada do milênio está sendo marcada pela existência, no interior da sociedade internacional, de duas tendências contraditórias nas esferas da economia e da política.

Na economia, a tendência aponta no sentido de integração simultaneamente global e regional. No plano da globalização, cerca de 400 grandes empresas multinacionais dos EUA, da União Européia (UE) e do Japão controlam 75% do PIB, do comércio e das finanças mundiais. No plano da regionalização, formam-se megablocos geoeconômicos como a UE, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (North America Free Trade Agreement, Nafta) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul).

Na política, a tendência percorre caminho inverso ao da economia e aponta no sentido da fragmentação territorial de diversos Estados multinacionais, como foi o caso da Iugoslávia, Tchecoslováquia e URSS.

Um diagnóstico sobre a conjuntura atual e um prognóstico sobre cenários futuros implicam responder previamente à seguinte questão: o que foi e como chegou ao fim o sistema internacional do século xx? O estudo desse sistema internacional será feito mediante a combinação de dois métodos: o analítico e o histórico.

Nunca considerei os dois métodos incompatíveis. Sempre pensei, ao contrário, que eles se integram reciprocamente. Quem trabalha com o método analítico nunca pode esquecer que a realidade é bem mais rica do que as tipologias abstratas, que devem ser continuamente revistas para dar conta dos novos dados ou de novas interpretações dos dados já conhecidos. Mas o historiador também deve se dar conta de que, para compreender, descrever e ordenar a realidade de fato revelada pelos documentos, não pode abrir mão de conceitos abstratos, cujo significado, saiba ou não, lhe é fornecido pelos fanáticos da análise (BOBBIO, 1995, p. 15).


A sociedade internacional

Segundo Aron (1987) há que se distinguir analiticamente os conceitos de sociedade internacional e sistema internacional. A sociedade internacional é um conceito genérico mais abrangente, que engloba duas esferas: o mercado mundial e o sistema de Estados. No âmbito da sociedade internacional, desenrolam-se três tipos de relações: transnacionais, interestatais e supranacionais. Nas relações transnacionais, os principais atores são as empresas multinacionais; nas interestatais, são os Estados nacionais; nas supranacionais, são principalmente as organizações não-governamentais (ONGs).


O sistema internacional

Ainda segundo Aron (1987), o sistema internacional é parte da totalidade que é a sociedade internacional. É a dimensão política que corresponde ao sistema de Estados e é formado pelo conjunto de unidades políticas em interação recíproca, cujas relações desenvolvem-se “à sombra da guerra” (estado de natureza hobbesiano). Sua estrutura é anárquica (ausência de poder comum), hierárquica (grandes, médias e pequenas potências) e oligopolista (o seleto clube das grandes potências que dita as “regras do jogo”).

Os principais atores do sistema internacional são os Estados, na medida em que têm o poder de fazer a guerra e firmar a paz. Para Bobbio (1995), o Estado é bifronte, como o Janus da mitologia grega: na política interna, a relação entre Estado e sociedade baseia-se no monopólio da violência legítima (soberania estatal); na política externa, a relação entre Estado e Estados baseia-se na livre concorrência da força (anarquia internacional).


O “breve século xx

O historiador inglês Hobsbawn (1995) cunhou essa expressão para contrastar com a de “longo século xix” (1789-1914). O “século curto” divide-se em duas fases — a Nova Guerra dos 30 Anos (1914-1945) e a Guerra Fria (1947-1991) — e seu desfecho é marcado pela queda do muro de Berlim e o fim da URSS. A denominação “Nova Guerra dos 30 Anos” é inspirada pela Guerra dos 30 Anos (1618-1648), cuja Paz de Westfália inaugurou o moderno sistema de Estados e a política de equilíbrio europeu.

O sistema internacional do Concerto Europeu (1814-1914) era multipolar (Grã-Bretanha, Áustria, Prússia, Rússia e França), homogêneo (cultura iluminista, ideologia liberal e religião cristã) e regional (continente europeu). Já o sistema internacional da Guerra Fria mostrou-se bipolar (EUA e URSS), heterogêneo (capitalismo e comunismo) e global (extensão mundial). Esse sistema bipolar opôs a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao Pacto de Varsóvia e, desde 1970, o “equilíbrio do terror” foi garantido pela mútua destruição assegurada (mutual assured destruction, MAD).


A rivalidade entre EUA e URSS

Weber (1982) observou que não existe escolha teórica inteiramente neutra, toda escolha sempre implica valores. Nessa perspectiva, descarto qualquer explicação que acarrete apologia ou satanização, seja do sistema norte-americano, seja do sistema soviético. Evitarei também qualquer explicação liberal (cf. Karl Friederich) que enfatize estritamente a dicotomia política entre democracia e totalitarismo, assim como qualquer explicação marxista (cf. Lênin) que sobrevalorize especificamente o antagonismo econômico entre capitalismo e socialismo. De acordo com meus valores e preferências, adotarei o realismo (cf. Raymond Aron e Hans Morghentau) como teoria que coloca ênfase nas questões geopolíticas e estratégicas para explicar a confrontação entre as superpotências.

Compreender exige teoria, teoria exige abstração, e abstração exige simplificação e ordenamento da realidade. Teoria alguma pode explicar todos os fatos. [...] Uma das medidas de uma teoria é o grau em que ela abrange e explica os fatos relevantes. Uma outra, e a mais importante, é o grau em que ela mais abrange e melhor explica esses fatos do que qualquer outra teoria (HUNTINGTON, 1995, p. 15-16).

Segundo Brzezinski (1989), a rivalidade entre os EUA e a URSS deve ser vista como uma confrontação simultaneamente histórica, imperial e global.

A confrontação histórica dá-se entre uma potência oceânica (os EUA), sucessora da Grã-Bretanha, da Espanha e da Holanda, e uma potência terrestre (a URSS), sucessora da Alemanha imperial e nazista e da França napoleônica. Esse tipo de confrontação vem desde a Antiguidade, como atestam as lutas entre a Grécia e a Pérsia, entre Atenas e Esparta, entre Roma e Cartago.

Mapa 1

Fonte: (BRZEZINSI, 1989, p. 12)

A confrontação imperial ocorre entre um império marítimo (os EUA), que é poroso, fragmentado, descontínuo e tem projeções transoceânicas nas duas extremidades da Eurásia (Mapa 1), e um império continental (a URSS), compacto, contínuo e com projeção euro-asiática (Mapa 2). A expressão militar do primeiro é a Otan; do segundo, o Pacto de Varsóvia.

Mapa 2

Fonte: (BRZEZINSI, 1989, p. 13)

Na confrontação global, o prêmio pela vitória não é, como foi no passado, a hegemonia regional, mas a supremacia mundial e, no limite, a liderança de um império universal.


A luta pela Eurásia

A Eurásia é o gigantesco continente formado pela Europa e a Ásia. Uma comparação entre a Eurásia e a América do Norte, em termos geográficos, populacionais e econômicos, mostra que a primeira constitui o continente basilar do planeta.

Tabela 1: Distribuição de área, população e produto interno bruto (PIB)

Mundo, Eurásia e América do Norte, 1985


Área

(milhões de Km2)

População

(bilhões de habitantes)

PIB

(US$ trilhões)

Mundo

135

4,70

12,3

Eurásia

51

3,30

7,4

América do Norte

21

0,26

3,2

Fonte: Banco Mundial (1985)

A geoestratégia da URSS consistia em evitar o cerco e o isolamento político-militar imposto pelos EUA (objetivo defensivo) e expandir-se do centro (heartland) para a periferia (rimland) da Eurásia, expulsando os norte-americanos da Europa e do Japão, para obter saídas aos “mares quentes” (objetivo ofensivo). (Mapa 3)

Mapa 3

Fonte: (BRZEZINSI, 1989, p. 50).

A geoestratégia dos EUA, por sua vez, procurava evitar a perda da Europa e do Japão, assim como o isolamento na América (objetivo defensivo) e controlar as regiões de periferia (rimland) para conter a URSS no centro da Eurásia (heartland), cercando os soviéticos em três frentes estratégicas fundamentais. (Mapa 4)

Mapa 4

Fonte: (BRZEZINSI, 1989, p. 51).

Na frente do extremo ocidente (1947-1948), ocorreu a crise de Berlim, intervenções na Grécia e Turquia e a formação da Otan, para bloquear o acesso soviético aos Estreitos e ao Mediterrâneo. Na frente do extremo oriente (1950-1953), há a Revolução Chinesa, a Guerra da Coréia e a formação do “perímetro de segurança” norte-americano (Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Filipinas e Tailândia), para impedir o acesso sino-soviético ao Pacífico. E na frente do sudoeste da Ásia (1979-1981), sucedeu a revolução no Irã e a invasão do Afeganistão, para impedir o acesso soviético ao petróleo do golfo Pérsico e ao oceano Índico; esta frente foi consolidada na guerra contra o Iraque, em 1991.

Na luta mundialmente decisiva pela Eurásia, os EUA e a URSS estão conscientes de três fatos geoestratégicos fundamentais. Primeiro, somente através do domínio oceânico os EUA mantiveram até agora a capacidade de impedir que as periferias vitais do continente eurasiano caíssem em mãos soviéticas. Segundo, se a URSS controlar todo o continente eurasiano, poderá, efetivamente, contestar o controle americano do Atlântico e do Pacífico. Terceiro, se a URSS alcançar o domínio oceânico, poderá transformar os EUA numa fortaleza isolada e cada vez mais vulnerável. Moscou seria, então, capaz de explorar os sentimentos nacionais antiamericanos, até mesmo no Hemisfério Ocidental, na própria periferia dos EUA (BRZEZINSKI, 1989, p. 161-162).


O rival unidimensional

O poder unidimensional da URSS — basicamente, uma superpotência militar — desempenhou importante papel no desfecho da Guerra Fria.

Tabela 2: EUA e URSS: Produto interno bruto (PIB) e despesas militares

Região

PIB (US$ trilhões)

Despesas militares

(US$ bilhões)

% do PIB

EUA

4,2

258,2

6,0

URSS

2,1

277,2

13,0

Fonte: Center of Defense Information (1985)

Como mostra a Tabela 2, os EUA, potência multidimensional, é, ao mesmo tempo, uma superpotência econômica (com PIB de US$ 4,2 trilhões) e uma superpotência militar (com despesas militares equivalentes a 6% de seu PIB). Por sua vez, a URSS, potência unidimensional, é uma superpotência militar (com despesas militares equivalentes a 13% de seu PIB) e uma subpotência econômica (PIB de US$ 2,1 trilhões).

A tese da “fadiga imperial” (imperial overstretch), do historiador Kennedy (1989), é uma das chaves para a explicação da derrota da URSS frente aos EUA no final da Guerra Fria. Se os gastos militares soviéticos (13% do respectivo PIB) eram o dobro dos gastos americanos (6%) e se o PIB soviético era a metade (50%) do norte-americano, o encargo militar tornou-se quatro vezes mais pesado para a URSS do que para os EUA. O militarismo soviético acabou por provocar a “fadiga imperial” que levou à retirada militar do Afeganistão, ao fracasso da perestróika e da glasnost, à queda do muro de Berlim e ao fim da própria URSS. (Gráfico 1)


Gráfico 1: Gastos militares dos EUA e da URSS (em bilhões de dólares, constant FY, 1985)

Fonte: Congressional Research Service.


Os novos interesses estratégicos dos EUA

Huntington (1992) destaca a mudança nas prioridades da política externa norte-americana para manter aquele país como a primeira e única superpotência global multidimensional do pós-Guerra Fria.

A contenção econômica do Japão tornou-se prioridade máxima dos EUA após a contenção militar da URSS. O fulcro da crise norte-americana não estava no militarismo (7,5% do PIB), mas no consumismo (75% do PIB) e nas baixas taxas de poupança e investimento dos EUA, quando comparadas às do Japão (25-30% ao ano). Já a manutenção do equilíbrio de poder na Eurásia foi política similar à da Grã-Bretanha, de “equilíbrio europeu”, no século XIX (França, Rússia, Prússia e Áustria). O novo equilíbrio de poder eurasiano contemplava quatro grandes potências regionais (Rússia, União Européia, China e Índia). Assegurado o equilíbrio, a “baleia” norte-americana poderia reinar soberana nos oceanos, ao deter sozinha 55% da capacidade de guerra naval do planeta.

Houve ainda interesses seletivos no Terceiro Mundo — América (México, América Central e Caribe, canal do Panamá), África (África do Sul, rota dos superpetroleiros pelo Cabo), Oriente Médio (Arábia Saudita e golfo Pérsico, “jugular” do petróleo); Extremo Oriente (Coréia do Sul e Filipinas, “ferrolhos” do Pacífico).


O Brasil no contexto internacional

No hemisfério continental (Norte), estão 75% das terras (100 milhões de km²) e 85% da população (5 bilhões habitantes) do mundo; este hemisfério responde por 80% do PIB (US$ 22,5 trilhões em um total de US$ 28 trilhões) e do comércio (US$ 4,8 trilhões em um total de US$ 6 trilhões) mundiais. Ao hemisfério oceânico (Sul) — onde se concentram 25% das terras (35 milhões de km²) e 15% da população (1 bilhão de habitantes) — cabem 20% do PIB mundial (US$ 5,5 trilhões) e do comércio (URS$ 1,2 trilhão) mundiais.

A posição brasileira é sul-hemisférica, excêntrica e periférica em relação aos quatro centros do poder mundial: as regiões nordeste e sudoeste dos EUA, a Europa Ocidental e a Ásia do Pacífico. O Brasil tem um PIB de US$ 900 bilhões (3% do PIB mundial) e US$ 6 mil de renda per capita. Entre seus problemas mais graves estão as reduzidas exportações (US$ 60 bilhões, equivalentes a 1 % do comércio mundial), os desequilíbrios regionais e as desigualdades sociais.


Tabela 3: Distribuição de renda per capita

Brasil, Japão, Alemanha e EUA

Países

20% mais pobres (US$)

20% mais ricos (US$)

Diferencial piso/teto

Brasil

600

18.500

30 vezes

Japão

9.000

39.000

4

Alemanha

6.600

38.000

6

EUA

5.800

51.700

9

Fonte: (IDH, 1999)

No ano 2000, o Brasil era uma potência média (10º PIB do mundo) que ainda não utilizara integralmente todos os seus fatores de poder nacional, tais como população, território, base industrial, recursos minerais e energéticos, capacidade de ciência e tecnologia. A mobilização desses fatores de poder para transformar o País em grande potência não é tarefa de um governo, mas de, no mínimo, uma geração, e só um projeto estratégico de médio prazo poderá levar o País do estado de potência média à situação de grande potência regional. Na política global, será preciso evitar tanto a confrontação, quanto o alinhamento automático com os EUA, mantendo uma autonomia relativa frente à hiperpotência norte-americana. Para contrabalançar a hegemonia dos EUA, o Brasil precisaria ampliar e diversificar suas relações com a União Européia, o Japão, a China e a Índia. Na política regional, necessita atuar em duas frentes estratégicas: por um lado, buscar projeção continental sul-americana, expandindo-se a partir do Mercosul e fortalecendo a aliança estratégica e econômica com a Argentina; por outro lado, obter projeção oceânica sul-atlântica, interagindo com três países-chave do continente africano (África do Sul, Angola e Nigéria).


Os cenários para o século XXI

Com isso, praticamente fechamos o ciclo e retornamos ao ponto de partida, quando afirmamos que o atual sistema “unimultipolar” consiste de uma única superpotência global e diversas grandes potências regionais. Este sistema, por ser híbrido e de transição, deverá dar origem a outro sistema internacional. A partir do diagnóstico feito até aqui, é possível prognosticar pelo menos três cenários, dois extremos e um intermediário, para o futuro. Tais cenários não são necessariamente alternativos ou excludentes; podem se apresentar como cenários sucessivos no decorrer do século xxi.

Em um cenário “hobbesiano”, trabalha-se com a hipótese do surgimento de um sistema unipolar — baseado numa pax americana — que daria origem a um império universal liderado pelos EUA, os quais, elevados à posição de super-Leviatã, seriam capazes de impor ao mundo uma “paz pela força”, baseada no monopólio global da violência legítima. Atualmente, os EUA são uma hiperpotência, têm um PIB de US$ 9,5 trilhões (1/3 do PIB mundial) e 55% do poderio naval do planeta e tentam viabilizar a criação de um escudo espacial antimíssil.

Temos um destino a cumprir, um “destino manifesto” sobre todo o México, sobre a América do Sul, sobre as índias Ocidentais e o Canadá. [...] As portas do império chinês devem ser derrubadas pelos homens de Sacramento e do Oregon, e os arrogantes déspotas japoneses, inimigos da cruz, serão iluminados nas doutrinas do republicanismo e da lei do voto. A águia da república pousará sobre o campo de Waterloo, depois de traçar seu vôo entre os desfiladeiros do Himalaia ou dos montes Urais, e um sucessor de Washington ascenderá ao trono do império universal (BOW, 1850 apud BARRACLOUGH, 1973, p. 98-99).

Em um cenário intermediário, prevê-se o ressurgimento de um sistema bipolar baseado em um novo equilíbrio de poder. De um lado, teríamos uma Aliança Atlântica (Otan) comandada pelos EUA, expandindo-se cada vez mais em direção à Europa Oriental; de outro, a reação de um bloco eurasiano formado pelos três gigantes continentais (China, Rússia e índia), cuja estratégia de contenção mergulharia o mundo numa II Guerra Fria.

Em um cenário “kantiano”, por fim, formula-se a hipótese do retorno a um sistema multipolar baseado numa pax universalis. A consolidação da democracia e sua propagação para a maioria dos países do planeta poderia culminar numa federação de repúblicas mundial livres ou numa república universal. Esta república kantiana seria gerida por uma Comunidade das Nações, com uma diferença específica essencial: diferentemente das Nações Unidas (ONU), deverá dispor de um poder armado próprio. Assim, em situações extremas, poderia recorrer a esses meios de coerção para dar eficácia ao direito internacional, cujo aparato jurídico apoiado pela violência legítima estaria em condições de proteger os países fracos, impor limites à prepotência dos países fortes e assegurar ao mundo inteiro uma “paz pela lei”.


Kant contra Hobbes

Para finalizar caberia esclarecer como me posiciono frente a esses cenários prospectivos. A resposta requer a volta a um passado que, a esta altura, já pertence à história. Em 1968, estudante da Universidade de São Paulo, aprendi com Antonio Gramsci duas lições fundamentais: a primeira é que um intelectual deve ser pessimista de inteligência, mas otimista de vontade; a outra é que a história não está predeterminada, porque o futuro é cose a fare. Durante mais de 35 anos esse aprendizado norteou minha reflexão como intelectual e minha ação como ser moral. É ainda com esse espírito gramsciano, que marcou também o caráter de minha geração, que me posiciono claramente: é Kant contra Hobbes, é a Paz Perpétua contra o Leviatã. Como intelectual, sei que a “paz pela espada” imposta pelo império hobbesiano universal parece ser o cenário mais provável. Como ser moral, porém, toda a minha ação será sempre no sentido de tornar possível a “paz pelo direito”, que é consubstancial à república democrática universal.


Referências

Aron, R. Os últimos anos do século. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

Barraclough, G. Introdução à história contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

Bobbio, N. Direita e esquerda. São Paulo: Unesp, 1995.

Brzezinski, Z. EUA x URSS: o grande desafio. Rio de Janeiro: Nórdica, 1989.

HOBSBAWM, E. Era dos extremos. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

Huntington, S. (1992). A mudança nos interesses estratégicos americanos. Política Externa, São Paulo, v. 1, p. 92, 1992.

______. O soldado e o Estado. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1995.

______. A superpotência solitária. Foreign Affairs (edição brasileira), n. 30, mar. 1999.

KENNEDY, P. Ascensão e queda das grandes potências. São Paulo: Campus, 1989.

WEBER, Max . “A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais”. In Weber, Sociologia, org. Gabriel Cohn, Editora Ática, pág. 79, 1982.



sábado, julho 22, 2006

Gramsci: hegemonia e revolução

Texto publicado na Coleção Documentos - Série Teoria Política (IEA/USP), São Paulo, 1998


A noção de hegemonia desempenha o papel de um dos conceitos-chave no pensamento político de Antônio Gramsci. Embora atribuísse a paternidade do conceito a Lênin - que enfatizava na hegemonia o momento da coerção -, Gramsci enriquece esse conceito com uma interpretação original, acrescentando-lhe nova amplitude ao enfatizar na hegemonia o momento de direção cultural e ideológica. A hegemonia é, na imagem de Maria-Antonietta Macciocchi, a parte visível do iceberg sob a qual se encontra todo o corpo teórico-político gramsciano. Dito de outra forma, todo o pensamento político de Gramsci (a noção de bloco histórico, a distinção entre sociedade civil e sociedade política, o papel do intelectual como funcionário da superestrutura e a concepção do partido político como o Príncipe Moderno) articular-se-ia em torno do conceito de hegemonia. Embora não seja a única, esta seria, pois, sua mais importante contribuição para a teoria marxista.


A superestrutura do bloco histórico

Para Gramsci, a estrutura é a base sócio-econômica em que se assenta e pela qual é determinada, em última instância, a superestrutura político-ideológica. A estrutura seria formada pelo conjunto das forças materiais e do mundo da produção, ou seja, a totalidade das forças produtivas e as correspondentes relações de produção. A superestrutura abarcaria duas grandes esferas: a sociedade civil (ou ideologia) e a sociedade política (ou Estado). “Podemos distinguir” - afirma Gramsci - “dois grandes níveis na superestrutura, o que pode ser designado como sociedade civil, isto é, o conjunto dos organismos, habitualmente chamados internos e privados, e o da sociedade política ou Estado, correspondendo respectivamente à função de hegemonia que o grupo dirigente exerce sobre o conjunto social e à da dominação direta ou comando, que se expressa através do Estado e do poder jurídico.”

O vínculo orgânico e a unidade dialética entre a estrutura e a superestrutura engendram o bloco histórico, no qual “as forças materiais são o conteúdo e as ideologias a forma”. A sociedade civil englobaria a extensa rede de funções educativas e ideológicas; a sociedade política - o Estado em sentido estrito - exerceria o monopólio da força e da coerção. O Estado, agora em sentido amplo, seria formado pelo conjunto da sociedade civil e da sociedade política. “Pode-se dizer” - segundo Gramsci - “que o Estado é a sociedade política + a sociedade civil: uma hegemonia protegida pela coerção.”

A articulação orgânica do bloco histórico, isto é, a ligação entre estrutura e superestrutura, e, no interior da superestrutura, a ligação entre sociedade civil e sociedade política, é realizada pelos intelectuais. “Os intelectuais”- escreve Gramsci - “são os empregados do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político.” A mais original contribuição da análise gramsciana está, portanto, no papel que a sociedade civil desempenha no seio do bloco histórico. Enquanto Marx pensa a sociedade civil como o conjunto das relações econômicas, ou seja, como um momento da estrutura, Gramsci situa a sociedade civil na esfera da superestrutura ideológica. É esse novo enfoque que possibilita o estudo, em toda a sua complexidade, da noção de hegemonia.

A noção de hegemonia

Para Jean-Marc Piotte, Gramsci inspira-se em Croce e em Lênin para formular o conceito de hegemonia. De Croce, retira a significação cultural de hegemonia; de Lênin, a significação política. Ainda que identificando a noção de hegemonia com a ditadura do proletariado, o conceito gramsciano é mais amplo que o leninista, pois, como foi dito, engloba o aspecto de direção cultural e ideológica. Assim, à sociedade civil caberia a função de hegemonia e à sociedade política, a de dominação. À sociedade civil, competiria a formação do consenso; à sociedade política, o exercício da coerção.

Na noção de hegemonia gramsciana, a classe que monopoliza o poder deve ser a um tempo dirigente e dominante. Uma classe social é dirigente em relação às classes auxiliares ou aliadas, das quais obtém a adesão ativa, a participação e o consentimento para o exercício do poder. Uma classe é dominante em relação às classes opositoras, as quais deve neutralizar - quando e se necessário - pelo uso da coerção. “A supremacia de um grupo social”- afirma Gramsci - “manifesta-se de duas maneiras, como dominação e como direção intelectual e moral. Um grupo social é dominante em relação a grupos adversos, que ele busca liquidar ou mesmo submeter pela força das armas, e é dirigente em relação a grupos que lhe são próximos ou aliados.”

Cabe, pois, distinguir no interior do bloco histórico três tipos de grupos sociais. O primeiro, formado pela classe fundamental que exerce a função diretiva do sistema hegemônico; o segundo, integrado pelas classes auxiliares que, através do consenso, ampliam a base social da hegemonia; o terceiro, composto pelas classes subalternas que, em sendo opositoras, estão marginalizadas do sistema hegemônico.

Aos intelectuais cabe a função de cimentar a política de alianças, fornecendo a soldadura do bloco histórico. Primeiro, imprimindo à classe fundamental um elevado grau de homogeneidade e autoconsciência, isto é, transformando-a de classe em si em uma classe para si. Em seguida, assimilando ou suprimindo tanto os intelectuais tradicionais da antiga classe hegemônica quanto os intelectuais orgânicos das classes auxiliares e subalternas. Por fim, difundindo a ideologia da classe fundamental ao conjunto do organismo social – ou seja, universalizando-a – de forma a obter o consenso necessário ao funcionamento do sistema hegemônico. Enfocado segundo a ótica da classe operária, o partido revolucionário é o intelectual coletivo que, cumprindo as mesmas funções do intelectual orgânico, desenvolve nela a autoconsciência proletária. Dito de outra forma, o partido deve forjar um sistema de alianças que articule as classes subalternas em torno da classe operária, criando a base social necessária à formação de um novo bloco histórico.

Enfocando a questão do partido como centro de sua elaboração teórica, Gramsci realiza uma nova leitura de Maquiavel, repensando e atualizando o mito do Príncipe. Para Gramsci, as tarefas fundamentais do Príncipe moderno ultrapassam os limites do carisma de um herói individual - o Condottiero renascentista - e só podem ser realizadas por um partido político, capaz de forjar uma vontade coletiva nacional-popular e de edificar um novo tipo de Estado. A propósito, escreve Gramsci: “O Príncipe moderno, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoal real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo, um elemento de sociedade complexo no qual comece a concretizar-se uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente em ação. Esse organismo já foi dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político; a primeira célula na qual se resumem os germes de vontade coletiva que tendem a vir a ser universais e totais.” Caberia, pois, ao partido revolucionário - através da aliança entre a classe operária e as demais classes subalternas - criar um novo sistema hegemônico e assumir a direção da sociedade civil. Essa seria a condição preliminar e necessária para o enfrentamento final com a classe antagônica, de forma a arrebatar-lhe o domínio do Estado e organizar as bases de um novo bloco histórico.


Uma estratégia para o ocidente

A originalidade do conceito de hegemonia e sua importância na filosofia da praxis se explicitam na elaboração de diferentes estratégias para o Oriente (países semi-industrializados) e o Ocidente (países industrializados). Para tanto, Gramsci estabelece comparação entre a arte militar e a arte da política. Na guerra de movimento, a artilharia abre brechas nas linhas inimigas, pelas quais irrompe a infantaria e obtém uma vitória imediata e decisiva. Na guerra de posição, o equilíbrio de forças entre os antagonistas implica numa estratégia de desgaste e na perspectiva de uma vitória em longo prazo. Na arte da política, a guerra de movimento seria o ataque direto e frontal ao poder, do qual resultaria a conquista imediata do aparelho de Estado. A guerra de posição designaria, por sua vez, uma luta prolongada pela obtenção da hegemonia na sociedade civil como condição prévia para o domínio da sociedade política. As crises econômicas, à medida que enfraquecem e desorganizam momentaneamente as forças inimigas, desempenhariam no plano da política o papel da artilharia pesada na arte militar.

Na Rússia de 1917, os bolcheviques conquistaram o poder de assalto e puderam conservar o domínio do Estado à medida que a sociedade política ali era tudo e a sociedade civil não era nada. Por outras palavras, o domínio do aparelho de Estado possibilitou à classe operária estender em poucas semanas sua hegemonia ao campesinato e assumir o controle dos centros vitais e dos pontos estratégicos do país. “No Oriente”, - escreve Gramsci - “o Estado era tudo, a sociedade civil era primária e gelatinosa; no Ocidente, ao contrário, existia uma correlação eficaz entre o Estado e a sociedade civil, e a um tremor do Estado podia ver-se uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas a trincheira avançada, atrás da qual existia uma poderosa cadeia de fortalezas e casamatas (...)”

Dessa diferenciação fundamental entre Oriente e Ocidente - cujos exemplos extremos eram a Rússia de 1917 e a Itália de 1922 - Gramsci extrai importantes conclusões de ordem estratégica. Na Itália, contrariamente ao que sucedera na Rússia, a crise desorganizou a classe operária e culminou com a vitória do fascismo. Ali, o desenvolvimento do capitalismo industrial conduziu à democracia liberal-burguesa e engendrou uma sociedade civil forte, complexa e articulada, que possuía a uma correlação eficaz com o Estado. Como decorrência dessa correlação eficaz, a debilidade conjuntural do Estado em 1920-22 foi compensada pelo surgimento, na esfera da sociedade civil, de grupos para-militares que - apoiados pelos capitalistas, latifundiários e camadas médias - garantiram pela força a sobrevivência do Estado.

A primazia da sociedade civil sobre o Estado nos países capitalistas avançados leva Gramsci a traçar para o Ocidente uma estratégia distinta da que fora empregada no Oriente. Dito de outra forma, no Ocidente a guerra de movimento deveria ceder lugar à guerra de posição. A luta pela conquista de uma incontestável hegemonia sobre a sociedade civil, a obtenção de um vigoroso apoio das classes subalternas, a formação de uma ampla rede de alianças políticas e a construção de um novo bloco histórico que oferecesse uma clara alternativa ao bloco histórico dominante, todas essas condições deveriam necessariamente proceder a conquista do aparelho de Estado. Em síntese, nos países capitalistas avançados do Ocidente, onde existia um equilíbrio adequado entre sociedade civil e sociedade política, para uma nova classe ascender ao poder era imprescindível - primeiro - tornar-se dirigente na sociedade civil, para só depois de conquistada essa direção moral e intelectual tornar-se - finalmente - dominante no Estado.

Em 1928, quando do julgamento político de Gramsci, o representante do Estado fascista lançou sobre o acusado político o seguinte anátema: “É preciso impedir esse cérebro de pensar por vinte anos”. Em 1937, após uma década de martírio nas masmorras do fascismo, morria Antônio Gramsci. Em 2006, quase setenta anos após sua morte, os Cadernos do Cárcere acrescentam uma nova e grandiosa dimensão à estatura de Gramsci como ser humano, personagem histórico, teórico marxista e dirigente político da classe operária. Quanto à memória de seu verdugo, não ficou nem poeira daquele esbirro do fascismo e seu nome perdeu-se para sempre nos esgotos da História. Antônio Gramsci, porém, imortalizado nos Quaderni, viverá pela eternidade ou, para usar suas próprias palavras, für ewig.

quinta-feira, julho 20, 2006

Brasil e Argentina em perspectiva

Este artigo analisa as relações entre Brasil e Argentina dentro de uma perspectiva histórica de síntese, que se estende do século XVII ao XX. A análise remonta ao conflito entre as metrópoles ibéricas – Portugal e Espanha – desde a fundação da colônia de Sacramento às margens do estuário platino, passando pela rivalidade entre os dois Estados independentes – o Império brasileiro e a República portenha -, até o processo de integração inaugurado pelo advento do Mercosul. A característica estrutural desse relacionamento é o processo pendular que oscila do conflito à cooperação entre as duas potências da Bacia do Prata. [MELLO, Leonel Itaussu de Almeida. "Brasil e Argentina em Perspectiva". Revista de História, v. 1, n. 147, p. 211-246, 2003.]


O cenário que emoldura o tema deste artigo é a América do Sul, subcontinente que, na síntese lapidar de Lewis Tambs, “cercado por três mares – o Atlântico, o Pacífico e o Caribe; equilibrado por três altiplanos – o Andino, o Brasileiro e o Guiano; e atravessado por três rios – o Prata, o Amazonas e o Orenoco, inclina-se para o Altântico” (Tambs, 1983: 90-91). Em termos de delimitação espacial, essa massa geográfica meridional compartimenta-se em três grandes regiões geopolíticas: a amazônica, a andina e a platina. Esta última, com seus 3,5 milhões de km2 e 100 milhões de habitantes, assemelha-se a um triângulo invertido com seus vértices em Sucre, Santos e Buenos Aires, e uma extensa fachada atlântica que se estende do litoral sul brasileiro até o delta platino.

Nos pontos extremos do sistema fluvial platino situam-se os dois maiores centros econômicos e demográficos sul-americanos: São Paulo, no planalto de Piratininga e Buenos aires, na planície pampeana. Dentro do triângulo platino existem dois grandes eixos populacionais: o argentino-uruguaio, no sentido oeste-leste, formado por Rosário, Buenos Aires e Montevidéu; e o brasileiro, no sentido sudeste-nordeste, formado por Porto Alegre, Curitiba e São Paulo (cf. Aicardi, s.d.: 31-42). Os principais rios da bacia platina – Paraná, Paraguai, Uruguai e Prata – e os territórios adjascentes constituem parte integrante do nosso tema de reflexão: o relacionamento brasileiro-argentino.

Embora bastante valorizado nos últimos anos, o estudo das relações entabuladas entre o Brasil e a Argentina não deve ser encarado como um subproduto do Acordo, da Ata de Integração e do conjunto de Protocolos abrangendo um amplo e diversificado espectro de temas políticos, militares, econômicos, tecnológicos e culturais, assinados há quinze anos (1986). Ao contrário, o exame da literatura disponível demonstra que a relevância e a atualidade do intrincado relacionamento brasileiro-argentino têm sido destacadas, implícita ou explicitamente, em publicações antigas ou recentes, por vários intelectuais de renome internacional e de reconhecida autoridade acadêmica.

Em um ensaio clássico, datado de 1933, Caio Prado Jr. salientava que o assunto enfocado — o processo de fixação das linhas demarcatórias brasileiras na Bacia do Prata — não era um mero exercício de bizantinismo histórico, mas uma questão da maior centralidade nas relações internacionais dos Estados sul-americanos, à qual se ligavam “alguns dos acontecimentos mais salientes da história, tanto do Brasil como das repúblicas platinas”. Acrescentava ainda o citado historiador que, ao evidenciar a interação recíproca de fatores geográficos e históricos, o assunto relativo à formação dos limites meridionais brasileiros era particularmente propício ao enfoque de uma disciplina sociológica recém-formada, a geopolítica, desde que usada cum grano salis: “geopolítica no bom sentido; ciência, e não pretexto e arma ideológica de pretensões internacionais descabidas e agressões injustificáveis” (cf. Prado Jr., 1972:143).

Em livro de publicação mais recente, no qual analisa as relações de conflito/cooperação brasileiro-argentinas, Hélio Jaguaribe enfatiza também o papel dos condicionamentos histórico-geográficos no processo de interação entre os dois países, afirmando inclusive que a importância da fronteira sulina resulta não de sua extensão, mas fundamentalmente do fato de ter sido, desde a época colonial, “a zona de encontro e de tensão entre os sistemas português e espanhol” (cf. Jaguaribe, 1986:165).

As referências acima, que à primeira vista poderiam ser tomadas como argumento de autoridade, ganham maior consistência quando corroboradas por uma série de dados que evidenciam o peso relativo de ambos os países no conjunto da América Latina.

Algumas estatísticas agregadas, relativas ao ano de 1999, demonstram que Brasil e Argentina possuem conjuntamente uma área de 11,8 milhões de km2, uma população de 200 milhões de pessoas e um produto bruto de US$ 1 trilhão, representando, aproximadamente, metade do território, dos habitantes e do PIB total da América Latina. Ambos os países possuem o maior e o mais diversificado parque industrial ao sul do Rio Grande, complementado por imensas fontes de energia, ferro, manganês, urânio, carnes e cereais, além de ocuparem uma posição geoestratégica essencial à defesa e à segurança do Atlântico Sul.

Ademais de sua notória e evidente atualidade, a relevância do relacionamento Brasil-Argentina e da interação de ambos com os demais países platinos - Uruguai, Paraguai e Bolívia - pode ser igualmente demonstrada mediante análise das vicissitudes do passado comum à guisa de um breve balanço retrospectivo.

Os conflitos luso-espanhóis durante o período colonial e a rivalidade brasileiro-argentina após a independência íbero-americana constituíram-se historicamente no epicentro das constantes oscilações geopolíticas ocorridas na região platina. De todas as regiões latino-americanas, a Bacia do Prata foi aquela que se transformou no palco dos mais numerosos e cruentos conflitos bélicos travados entre os Estados do subcontinente desde a emancipação política: as guerras da Cisplatina, do Paraguai e do Chaco. Ademais, há que se recordar também que, à exceção do Brasil com a Bolívia, todos os outros países platinos empreenderam guerras entre si.

A “questão platina” tornou-se o fulcro da rivalidade hispano-lusitana no Novo Mundo desde 1680, com a fundação da Colônia do Sacramento à margem esquerda do rio da Prata, praticamente defronte a Buenos Aires. Essa fortificação foi erigida como um posto militar avançado para assegurar à Coroa portuguesa uma “fronteira natural” entre seus domínios e os de Espanha ao sul do continente, assim como o livre acesso à navegação e ao comércio platinos, consoante o princípio geopolítico de que o poder que dominar a desembocadura controlará o rio.

A edificação do forte inseriu-se no contexto do recrudescimento da rivalidade luso-castelhana após o interregno de mais de meio século de união das Coroas ibéricas (1580-1640). Após a Restauração portuguesa intensificou-se o processo de expansão bandeirante-vicentina por territórios espanhóis situados além da linha de Tordesilhas, reacendendo o choque entre as metrópoles ibéricas na América colonial. Em meados do século XVIII, o Tratado de Madri, com base no princípio do uti possidetis (posse pela ocupação), transferiu aos portugueses o domínio de um vasto território americano que, nos termos do acordo de Tordesilhas, constituía de direito possessão da Coroa espanhola. Com isso consumou-se a “marcha para o Oeste”, que agregou uma nova área de 5 milhões de km2 aos 2,8 milhões de km2 que formavam originalmente o império luso-americano.

Francisco de Auzmendi, oficial-maior da Secretaria dos Negócios Estrangeiros da Espanha àquela época, emitiu um juízo sobre o acordo luso-castelhano que merece ser re­produzido pela argúcia com que capta e sintetiza o espírito do Tratado de Madri segundo a ótica dos interesses espanhóis: “A substância do Tratado consiste em concessões mútuas e na partilha de um imenso território despovoado. Nós cedemos a Portugal o que não nos serve e para eles será de grande utilidade; e Portugal nos cede a Colônia e o rio da Prata que não os beneficia e nos destrói” (apud Soares, 1972:32-3).

Destarte, a Espanha reconheceu a Portugal a posse da Bacia Amazônica em troca do controle da Bacia do Prata, onde os portugueses receberam os Sete Povos das Missões como compensação pela transferência aos espanhóis da Colônia do Sacramento e da margem esquerda do rio da Pra­ta. Com esta permuta Portugal apossou-se de terras no interior do que seria futuramente o Rio Grande do Sul e abdicou ao estuário platino como fronteira meridional de seu império americano. Para precaver-se contra um novo surto expansionista luso-brasileiro na direção sudoeste-sul, a Espanha criou em 1763 o Vice-Reinado do Rio da Prata, englobando a Argentina, a Banda Oriental (futuro Uruguai), o Paraguai e o Alto Peru (futura Bolívia), com capital em Buenos Aires.

O Virreinato possuía uma área de 5 milhões de km2 e 1 milhão de habitantes, constituindo um corpo político-administrativo em condições de opor uma barreira de contenção às pretensões portuguesas na Bacia do Prata. A renúncia à “fronteira natural” dos domínios lusitanos meridionais transformou-se durante o século XIX no nó górdio ou no gargalo das tensas e complexas relações de vizinhança entabuladas pelos Estados nascentes que partilhavam em regime de condomínio o sistema fluvial platino.

Com a emancipação latino-americana, o descompasso que caracterizou os processos de desenvolvimento das duas potências platinas jogou enorme papel na desconfiança e na ambivalência que estigmatizaram desde o início o relacionamento entre o Brasil e a Argentina.

Em 1808, a transformação do Brasil em sede da Coroa portuguesa, com a vinda da família real, da corte bragantina, da burocracia civil-militar e a transferência do aparelho administrativo estatal metropolitano para a colônia, contribuíram para que o país realizasse a independência por meio de um “arranjo político” ou de uma “negociação pelo alto” entre o príncipe regente português (D. Pedro) e a oligarquia agrária-escravocrata nativa (o “partido brasileiro”). Ao cimentar a aliança entre a dinastia Bragança e os grandes proprietários rurais, a solução monárquica logrou exorcizar o fantasma da anarquia interna, preservando intacta a unidade política e a integridade territorial do Império recém-fundado.

Destino diverso coube ao Vice-Reinado do Prata, onde a independência realizou-se pela via republicana e desembocou num processo duplamente conturbado. Inicialmente, ocorreu a secessão das regiões periféricas do Virreinato, cuja balcanização separou a Banda Oriental, o Paraguai e o Alto Peru do território argentino, ficando este último reduzido a uma área de 2,7 milhões de km2. Em seguida, a própria Argentina foi engolfada em meio século de guerras civis entre a oligarquia litorânea (unitários) e os caudilhos do interior (federalistas), que somente terminou em 1880 com a vitória de Buenos Aires sobre as províncias.

Após o triunfo de portenhos sobre arribenhos, o país viveu um surto de prosperidade econômica que se estendeu até a Primeira Grande Guerra. Entre 1886 e 1914 o PIB argentino saltou de US$ 1 bilhão para US$ 15 bilhões, sendo que às vésperas da Primeira Guerra o país era responsável pela metade da capacidade econômica e pela terça parte do comércio exterior de toda a América Latina (cf. Bandeira, 1987:16; Schilling, 1990:34). Nos quinze primeiros anos deste século a Argentina triplicou sua área cultivada, passando de 6,1 milhões de hectares para 21,3 milhões de hectares (cf. Bandeira, 1987:16), e, de produtora de couros no período colonial. transformou-se “em imensa fábrica de carne e numa grande usina de trigo” que abasteciam o mercado britânico (cf. Chaunu, 1971:91).

Referindo-se ao boom argentino da virada do século, Celso Furtado afirma que, entre 1890-1914, a população do país duplicou, saltando de 3,6 milhões para 7,2 milhões; a rede ferroviária cresceu de 12,7 mil km para 31,1 mil km; as exportações de cereais saltaram de 1.038 para 5.294 milhares de toneladas e as de carnes congeladas de 27 para 376 mil toneladas (cf. Furtado, 1969:67).

Cristalizou-se naquela época a concepção de uma Argentina-insular, que voltava as costas às províncias do interior e aos países sul-americanos ao mesmo tempo em que se debruçava sobre o litoral e se abria para o exterior. O projeto liberal-conservador da “geração de 80” estruturou um mo­delo de desenvolvimento dependente voltado para o mercado externo, com uma economia agropastoril centrada espacial e demograficamente no Pampa Húmeda e no porto de Buenos Aires, relegando ao abandono a Mesopotâmia e a Patagônia.

A concepção geopolítica da insularidade tinha como paradigma a Grã-Bretanha e foi sistematizada pelo almirante Segundo R. Storni, cujo livro Interesses argentinos en el mar, publicado em 1916, inspirou-se nas idéias do almirante norte-americano Alfred T. Mahan e do geógrafo alemão Friednch Ratzel.

O modelo de inserção subalterna e especializada na divisão internacional do trabalho, onde a Argentina desempenhava o papel de granja ou celeiro que, em toca de manufaturas, abastecia a Europa de alimentos, só revelou os primeiros sintomas de esgotamento a partir do crack de 1929. Para se ter uma idéia da prosperidade portenha basta apenas assinalar que, às vésperas da Grande Depressão, o PIB argentino era o dobro do PIB brasileiro e equivalente ao produto bruto somado de todos os países sul-americanos (cf. Boscovich, 1983:96).

Contrastando com a prosperidade argentina, o final do século passado foi para o Brasil um período de recessão e instabilidade em que se acoplaram a crise econômico-financeira, que se agravou com o término da Guerra do Paraguai, e a crise político-institucional da monarquia, abalada pelas questões servil, religiosa e militar. Em 1889, ambas as crises desembocaram no golpe que promoveu a substituição do Império pela República.

Após o curto interregno de jacobinismo militar, a República nascente adotou também um modelo político e econômico liberal que, em suas linhas gerais, perdurou até a Revolução de 1930. Vale lembrar que os pilares do liberalismo de tipo excludente eram a supremacia política das oligarquias rurais, assegurada pelo coronelismo, a política dos governadores e o predomínio dos grandes estados; a economia dependente primário-exportadora, centrada na cafeicultura, oficializada pelo Convênio de Taubaté e sustentada pela política de valorização do produto-rei; e a política de desvalorização cambial, cujo ônus financeiro era repassado à sociedade por meio do mecanismo de “socialização das perdas”.

A Grande Depressão revelou a fragilidade e os limites do liberalismo de corte oligárquico tanto na Argentina como no Brasil, cujas economias reagiram diversamente à crise do modelo primário-exportador. No Brasil, a reação ao colapso da monocultura cafeeira demonstrou, a partir da Revolução de 30, as virtualidades da política de industrialização via substituição de importações. Na Argentina, a anarquia da “década infame” assinalou o fim da “época de ouro”; o malogro relativo de uma tentativa industrializante similar à brasileira contribuiu para perpetuar o decadente modelo agro-pastoril eurocêntrico, baseado no ultrapassado liberalismo oitocentista.

A Segunda Guerra Mundial reativou temporariamente a prosperidade argentina com o aumento da demanda externa sobre seus principais produtos de exportação: a carne e o trigo. As reservas Monetárias acumuladas durante o conflito financiaram no pós-guerra o processo de modernização sócio-econômica promovido por Perón por meio de uma política baseada em três pilares: a industrialização substitutiva; o nacionalismo populista; e o redistributivismo social.

A equiparação do produto interno dos dois países no final da década de 1950 serviu para evidenciar tanto o dinamismo do modelo brasileiro quanto o esgotamento do modelo argentino. Nas décadas subseqüentes configurou-se a seguinte situação: em 1970 o PIB argentino representava perto de dois terços do PIB brasileiro, caindo para um terço em 1980 e para pouco mais de um quarto em 1985 (cf. Cepal, 1987:146-47). Resumindo: em 1930 a economia argentina era o dobro da brasileira e meio século depois a economia brasileira tornara-se o quádruplo da argentina, na última década, porém, essa diferença caiu para menos de um terço.

No âmbito das relações internacionais, a decadência das respectivas metrópoles no século XVIII deslocou o Brasil e a Argentina para a esfera de influência britânica. Após a emancipação latino-americana no século seguinte, a Grã-Bretanha tornou-se o fiel da balança de poder platina e praticou em relação àqueles países uma política de equilíbrio que assegurou o predomínio dos seus interesses na Bacia do Prata.

Exemplo de tal política foi a independência da Banda Oriental, anexada ao Brasil em 1821 sob a denominação de Província da Cisplatina. A luta dos patriotas orientais contra o Império foi apoiada pelas Províncias Unidas, que almeja­vam o controle de ambas as margens do Prata pela anexação do território vizinho. A intervenção argentina desencadeou a Guerra Cisplatina, que terminou em 1828 com a mediação inglesa. Esta procurou assegurar seus interesses no Prata ao apoiar a independência do Uruguai, um Estado-tampão (buffer state) destinado a amortizar a rivalidade entre o Império bragantino e a República portenha, impedindo que qualquer deles controlasse monopolisticamente a desembocadura e o comércio platinos. Lorde Ponsomby, o mediador da paz, sintetizou o papel desempenhado pelos britânicos numa frase lapidar: “colocamos um algodão entre dois cristais”.

Em meados do século XIX, a Grã-Bretanha superava os Estados Unidos no comércio com as jovens repúblicas hispano-americanas na base de US$ 60 milhões contra US$ 24 milhões, enquanto nas trocas com o Brasil a proporção era de US$ 20 milhões para a primeira contra US$ 4,2 milhões para o segundo. Às vésperas da Primeira Guerra, os investimentos britânicos na Argentina atingiam £ 319,6 milhões (contra £ 148 milhões aplicados no Brasil), montante que se aproximava dos £ 378,8 milhões investidos pela Grã-Bretanha na Índia e no Ceilão (cf. Chaunu, 1971:108-14). Estas cifras demonstram que, desde a independência, tanto o Brasil como a Argentina encontravam-se inseridos no espaço geopolítico de influência da hegemonia britânica.

No começo do século XX, com suas ferrovias e frigoríficos controlados por capitais ingleses, que representavam 80% dos investimentos estrangeiros, a Argentina era considerada uma semicolônia ou o “sexto domínio” do Império Britânico. Enquanto a oligarquia argentina mantinha-se aferrada à sua “vocação européia”, com a Grã-Bretanha importando 76% de sua carne e 34% de seu trigo (cf. Bandeira, 1987:15), a diplomacia do barão do Rio Branco reorientou a inserção do Brasil no cenário internacional, deslocando-o paulatinamente para a esfera de influência dos Estados Unidos.

A nova entente brasileiro-americana foi determinada, por um lado, pelo receio de uma coalizão antibrasileira dos países hispânicos sob a liderança de um Estado-monitor argentino e, por outro lado, pela necessidade de contrabalançar o peso excessivo da influência britânica na América do Sul. Além da especificidade da disputa pela supremacia platina, a rivalidade brasileiro-argentina da primeira metade do século XX entrelaçou-se também no mesmo período com a rivalidade anglo-americana pela hegemonia na América do Sul.

Em 1913, os investimentos norte-americanos na América Latina somavam US$ 1,250 bilhão (dos quais US$ 1,050 aplicado no México) contra US$ 4 mil bilhões da Grã-Bretanha. Por volta de 1929, o montante das inversões norte-americanas ascendera a US$ 4,050 bilhões, equiparando-se aos investimentos ingleses. No volume total de troca com os países latino-americanos, os norte-americanos superavam os britânicos na razão de 38,7% contra 14,9% nas exportações e de 34% contra 18% nas importações (cf. Chaunu, 1971:118-19).

No âmbito das relações bilaterais, cada país produziu de si uma auto-imagem idealizada e construiu do outro uma visão preconceituosa, ambas refletindo parcialmente o descompasso existente entre os processos de desenvolvimento brasileiro e argentino. Na percepção argentina, o Brasil era portador de uma irrefreável vocação expansionista, herdada do “espírito bandeirante” e da geofagia lusitana; na percepção brasileira, a Argentina acalentava um ethos irredentista, cujo sonho era a restauração do antigo Vice-Reino do Prata hegemonizado por Buenos Aires. Alimentado por esses estereótipos, desde o início do século XIX o relacionamento entre os dois países oscilou pendularmente entre o conflito e a cooperação.

Durante a guerra fria dos anos 50, simultaneamente ao recrudescimento da tensão entre os vizinhos platinos, o general Golbery do Couto e Silva alardeava em seus escritos geopolíticos a inserção do Brasil no mundo ocidental-cristão e seu alinhamento pró-americano no antagonismo dominante Leste-Oeste. Confrontando a política de Terceira Posição do peronismo argentino, Golbery propunha a Washington uma “barganha leal”: o Brasil assumiria uma posição de alinhamento estratégico aos Estados Unidos no conflito Leste-Oeste e, em troca, teria reconhecido o seu suposto direito a um “destino manifesto” no Atlântico Sul (cf. Couto e Silva,1967:50-2).

O clima de animosidade predominante entre os dois países platinos materializava-se na tensão fronteiriça que se tomava crescente com o deslocamento da linha divisória de oeste para sul, refletindo a colisão dos interesses brasileiro-argentinos em sua luta pela preponderância nos países mediterrâneos platinos: “Mais ou menos tributários da Argentina, oscilando entre a desconfiança, o ressentimento e a admiração e jungidos pela dependência econômica indiscutível — o Paraguai e a Bolívia, “prisioneiros geopolíticos”, muito mais o primeiro que a segunda, valem muito pela sua posição geográfica no flanco aberto e vulnerável do Brasil meridional e central e constituem, sobretudo por sua instabilidade política e econômica, indisfarçáveis zonas de fricção externa onde podem vir a contender, quer queiram. quer não, os interesses brasileiros e argentinos” (Couto e Silva, 1967:55).

A tensão ascendente atingia seu limiar na fronteira extremo-meridional, onde se chocaram no passado as forças luso-castelhanas e colidiam no presente as pretensões brasileiro-argentinas. Segundo o autor, essa área constituía “zona de vulnerabilidade máxima” exposta a ações adversas de origem regional. A citação abaixo é emblemática do ethos conflitivo e da percepção ideológica deformante que, atenuados por hiatos de cooperação, iriam ressurgir na década de 70, quando a desconfiança recíproca voltou a ser a nota dominante do discurso de setores civis e militares de ambos os países: “Mas é bem mais ao sul, onde o Uruguai, geograficamente meio brasileiro e meio platino, continua a viver e prosperar galhardamente em seu histórico papel de Estado-tampão, é aí onde Las Missiones avançam como uma cunha para o nordeste modelando o gargalo de Santa Catarina, que .se define a linha de tensão máxima do campo sul-americano, reforçada como é pela proximidade maior dos centros de força potencialmente antagônicos, seu dinamismo e potencial superiores, a tradição de choques e conflitos que vêm desde o passado colonial e, por fim, se bem não menos importante, uma aspiração hegemônica alimentada além do Prata por uma propaganda tenaz e incansável desde os dias já longínquos de Rosas. Aí, onde não há barreiras que valham, se encontra pois nossa verdadeira fronteira viva (...)” (Couto e Silva, 1967:58).

Por sua vez, o clima de confrontação dos anos setenta, centrado na polêmica questão de Itaipu, cederia lugar na década de noventa a uma nova fase de cooperação entre os dois países. Ao longo dessas três décadas as relações bilaterais brasileiro-argentinas passaram por três etapas sucessivas: competição, distensão e integração. Os anos de 1973, 1979 e 1986 sinalizam cronologicamente os eventos político-diplomáticos que, analisados retrospectivamentte, destacam-se como os principais momentos de inflexão de cada umas das mencionadas etapas: o Tratado de Itaipu, o Acordo Tripartite e a Ata de Integração.

Em 1973, as relações brasileiro-argentinas entraram numa dinâmica de aberta competição, e isto em razão da assinatura do Tratado de Itaipu com o Paraguai, Estado amortizador das tensões entre os dois grandes vizinhos e país mediterrâneo geoestrategicamente situado a cavaleiro do sistema fluvial platino. A rigor, as divergências bilaterais vinham se agravando veladamente desde 1971, quando a política brasileira de “fronteiras ideológicas” entrou em rota de colisão com a diplomacia argentina de “convivência no pluralismo ideológico”, colocada em prática pelo governo Lanusse com o escopo de contrabalançar a projeção do Brasil no subcontinente. A construção de uma gigantesca usina binacional a 17 quilômetros da fronteira argentina e o risco de um completo alinhamento paraguaio à política brasileira, vistos por Buenos Aires como uma séria ameaça ao equilíbrio geopolítico platino, transformaram-se no pomo de discórdia da rivalidade entre ambos os países durante a década de 1970.

Em 1979, a negociação de um Acordo Tripartite (assinado também pelo Paraguai) compatibilizou tecnicamente as usinas de Itaipu e Corpus, situadas a montante a a jusante do rio Paraná, abrindo-se assim uma nova fase de distensão das relações brasileiro-argentinas. Ao solucionar o conflito diplomático-geopolítico na região platina e ao assegurar o espaço necessário à manutenção da tradicional pendularidade paraguaia, a solução da denominada “questão de Itaipu” propiciou a normalização do relacionamento brasileiro-argentino e a retomada da cooperação bilateral no começo da década de 1980.

Em 1986, a assinatura da Ata e dos Protocolos oficializou o projeto de integração econômica bilateral e de cooperação multissetorial, a ser viabilizado de forma gradual, equilibrada e mutuamente vantajosa. Ao lado do desenvolvimento econômico e da modernização científica e tecnológica, outra importante dimensão do projeto integracionista foi o compromisso político assumido pelos novos sócios com a consolidação do recém-instaurado regime democrático. A partir daí, a implementação do processo de integração bilateral delineou a matriz original que, com a adesão do Uruguai e a democratização do Paraguai, serviu de arcabouço à proposta de criação de um mercado comum dos países do Cone Sul – o Mercosul -, sacramentada no começo de 1991 com a assinatura do Tratado de Assunção.

O início do terceiro milênio prenuncia o advento de um novo sistema internacional, ainda bastante híbrido, denominado de “unimultipolar” por Samuel Huntington. A principais características desse novo sistema são, simultaneamente, a unipolaridade estratégico-militar, a multipolaridade econômico-tecnológica, a globalização e a regionalização econômicas. A “Nova Ordem Mundial” é marcada pelo fim da bipolaridade estratégico-militar Leste-Oeste em decorrência da implosão do bloco socialista e do fim da União Soviética; pela emergência de uma única hiperpotência global multidimensional (os Estados Unidos); pela crescente multipolaridade econômico-tecnológica, cujos pontos focais são os Estados Unidos, a União Européia e o Japão; pela organização dos megablocos regionais, como o americano-canadense-mexicano, o europeu-ocidental e o asiático-oriental; e pelo aprofundamento da bissegmentação econômica em torno do eixo Norte-Sul, que divide o planeta em dois submundos distintos: o desenvolvido e o subdesenvolvido.

Nesse contexto, a consolidação de um espaço geoeconômico brasileiro-argentino torna-se uma questão da maior relevância, suscetível de produzir repercussões em nível platino – com a adesão do Uruguai e do Paraguai -, além um grande impacto nos países dos sistemas andino e amazônico da América do Sul. O subcontinente sul-americano possui uma área de 17 milhões de km2, habitada por 350 milhões de pessoas, com um PIB de US$ 1,6 trilhão e US$ 150 bilhões de exportações. Dentro desse conjunto o Mercosul forma, somados os quatro países-membros, um megabloco geo-econômico de quase 12 milhões de km2, povoado por mais de 200 milhões de habitantes, com um PIB superior a US$ 1 trilhão, uma renda per capita de US$ 5 mil, exportações equivalentes a US$ 90 bilhões e importações de US$ 100 bilhões.

Em suma, o Mercosul representa aproximadamente 2/3 do potencial global - geográfico, demográfico e econômico – de toda a América do Sul. Não é pouca coisa como ponto de partida ou plataforma de decolagem. Para quem pensa como Simon Bolívar que “a pátria é a América” o Mercosul foi, ao contrário, um bom começo, a despeito das vicissitudes que no momento atingem a Argentina, do fantasma da ALCA que ronda o subcontinente meridional e da crise conjuntural que assola atualmente a união aduaneira dos países platinos. No final da década de 70 o general Guglialmelli predisse que “o Cone Sul poderá ser um ponto de partida para a ulterior unidade da América Latina e um núcleo de poder regional frente aos grandes centros de poder mundial”. Por sua vez, Juan Domingo Perón, que sabia das coisas da política, havia vaticinado muito antes que o século XXI encontraria a Argentina e o Brasil “unidos ou subjugados”. O terceiro milênio está apenas começando: quem viver, verá!

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