segunda-feira, junho 12, 2006

John Locke e o individualismo liberal

Publicado originalmente em Os Clássicos da Política, org. Francisco C. Weffort, Ed. Ática, 1989, pág. 80-89.

As Revoluções Inglesas

"Em defesa da Liberdade, do Parlamento e da Religião Protestante", com este lema gravado em seu estandarte Guilherme de Orange desembarcou em solo britânico para depor o rei Jaime II e encerrar em 1688 um longo e tumultuado período da história inglesa.

O século XVII foi marcado pelo antagonismo entre a Coroa e o Parlamento, controlados, respectivamente, pela dinastia Stuart, defensora do absolutismo, e a burguesia ascendente, partidária do liberalismo. Esse conflito assumiu também conotações religiosas e se mesclou com as lutas sectárias entre católicos, anglicanos, presbiterianos e puritanos. Finalmente, a crise político-religiosa foi agravada pela rivalidade econômica entre os beneficiários dos privilégios e monopólios mercantilistas concedidos pelo Estado e os setores que advogavam a liberdade de comércio e de produção.

Em 1640, o confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento envolveu o país numa sangrenta guerra civil que só terminou em 1649 com a vitória das forças parlamentares. A Revolução Puritana, como foram denominados esses eventos, culminou com a execução de Carlos I e a implantação da república na Inglaterra.

Foi após os horrores da guerra civil, da consumação do regicídio e da instauração da férrea ditadura de Cromwell, que Thomas Hobbes, refugiado na França, publicou em 1651 o Leviatã. 0 livro era uma apologia do Estado todo-poderoso que, monopolizando a força concentrada da comunidade, torna-se fiador da vida, da paz e da segurança dos súditos.

O Protetorado de Cromwell, apoiado no exército e na burguesia puritana, transformou a Inglaterra numa grande potência naval e comercial. Em 1660 a morte do Lorde Protetor envolveu o país numa crise política cuja solução, para evitar uma nova guerra civil, foi a restauração da monarquia e o retorno dos Stuart ao trono inglês.

Durante a Restauração (1660-88) reativou-se o conflito entre a Coroa e o Parlamento, que se opunha à política pró-católica e pró-francesa dos Stuart. Em 1680, no reinado de Carlos 11, o Parlamento cindiu-se em dois partidos, os Tories e os Whigs, representando, respectivamente, os conservadores e os liberais.

A crise da Restauração chegou ao auge no reinado de Jaime 11, soberano católico e absolutista. Os abusos reais levaram à união dos Tories e Whigs que, aliando-se a Guilherme de Orange, chefe de Estado da Holanda e genro de Jaime 11, organizaram uma conspiração contra o monarca "papista".

Em 1688, Guilherme de Orange aportou no país à frente de um exército e, após a deposição de Jaime 11, recebeu a coroa do Parlamento. A Revolução Gloriosa assinalou o triunfo do liberalismo político sobre o absolutismo e, com a aprovação do Bill of Rights em 1689, assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a realeza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada.

John Locke, o individualista liberal

John Locke (1632-1704) que, como opositor dos Stuart, se encontrava refugiado na Holanda, retornou à Inglaterra após o triunfo da Revolução Gloriosa. Em 1689-90 publica suas principais obras: Cartas sobre a tolerância, Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo civil.

O Segundo tratado é uma justificação ex post facto da Revolução Gloriosa, onde Locke fundamenta a legitimidade da deposição de Jaime 11 por Guilherme de Orange e pelo Parlamento com base na doutrina do direito de resistência. Segundo o autor, seu ensaio estava destinado a confirmar a entronização de nosso Grande Restaurador, o atual Rei Guilherme; a justificar seu título em razão do consentimento do povo, pelo que, sendo o único dos governos legais, ele o possui de modo mais completo e claro do que qualquer outro príncipe da cristandade.

Locke nasceu em 1632 no seio de uma família burguesa da cidade de Bristol. Seu pai, um comerciante puritano, combateu na guerra civil nas fileiras do exército do Parlamento. Em 1652 Locke foi estudar em Oxford, formando-se em medicina e tornando-se posteriormente professor daquela Universidade. Em 1666 foi requisitado como médico e conselheiro de lorde Shaftesbury, destacado político liberal, líder dos Whigs e opositor do rei Carlos II no Parlamento. Shaftesbury foi o mentor político de Locke, exercendo grande influência em sua formação liberal. Em 1681, acusado de conspirar contra Carlos II, Shaftesbury foi obrigado a exilar-se na Holanda, onde faleceu dois anos depois. 0 envolvimento na conspiração de seu patrono obrigou Locke também a refugiar-se na Holanda em 1683, de onde só retornou após a queda de Jaime II.

Além de defensor da liberdade e da tolerância religiosas, Locke é considerado o fundador do empirismo, doutrina segundo a qual todo o conhecimento deriva da experiência. Como filósofo, Locke é conhecido pela teoria da tábula rasa do conhecimento, desenvolvida no Ensaio sobre o entendimento humano, onde afirma:

"Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De onde lhe provêm este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento." (Livro II, cap. 1, sec. 2)

A teoria da tábula rasa é, portanto, uma crítica à doutrina das idéias inatas, formulada por Platão e retomada por Descartes, segundo a qual determinadas idéias, princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência.

Os dois tratados sobre o governo civil

Como foi dito, os Dois tratados, escritos provavelmente em 1679-80, quando da conspiração de Shaftesbury contra Carlos 11, só foram publicados na Inglaterra em 1690, após o triunfo da Revolução Gloriosa.

O Primeiro tratado é uma refutação do Patriarca, obra em que Robert Filmer defende o direito divino dos reis com base no princípio da autoridade paterna que Adão, supostamente o primeiro pai e o primeiro rei, legará à sua descendência. De acordo com essa doutrina, os monarcas modernos eram descendentes da linhagem de Adão e herdeiros legítimos da autoridade paterna dessa personagem bíblica, a quem Deus outorgara o poder real.

O Segundo tratado é, como indica seu título, um ensaio sobre a origem, extensão e objetivo do governo civil. Nele, Locke sustenta a tese de que nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo. Locke tornou-se célebre principalmente como autor do Segundo tratado, que, no plano teórico, constitui um importante marco da história do pensamento político, e, em nível histórico concreto, exerceu enorme influência sobre as revoluções liberais da época moderna.

A exposição que se segue é uma síntese da teoria política desenvolvida no Segundo tratado, considerado por Norberto Bobbio como a primeira e a mais completa formulação do Estado liberal.

O estado de natureza

Juntamente com Hobbes e Rousseau, Locke é um dos principais representantes do jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais. O modelo jus-naturalista de Locke é, em suas linhas gerais, semelhante ao de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Existe, contudo, grande diferença na forma como Locke, diversamente de Hobbes, concebe especificamente cada um dos termos do trinômio estado natural/contrato social/estado civil.

Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede ao indivíduo, Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza.

O estado de natureza era, segundo Locke, uma situação real e historicamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da humanidade e na qual se encontravam ainda alguns povos, como as tribos norte-americanas. Esse estado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano, baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e harmonia.

Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano.

A teoria da propriedade

Locke utiliza também a noção de propriedade numa segunda acepção que, em sentido estrito, significa especificamente a posse de bens móveis ou imóveis. A teoria da propriedade de Locke, que é muito inovadora para sua época, também difere bastante da de Hobbes.

Para Hobbes, a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída pelo Estado-Leviatã após a formação da sociedade civil. Assim como a criou, o Estado pode também suprimir a propriedade dos súditos. Para Locke, ao contrário, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado.

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento originário da propriedade.

Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha limitações à propriedade. Inicialmente, quando "todo o mundo era como a América", o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação, possibilitando a troca de coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro (ouro e prata), convencionalmente aceito pelos homens. Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, que, além do trabalho, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou, finalmente, à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.

A concepção de Locke, segundo a qual "é na realidade o trabalho que provoca a diferença de valor em tudo quanto existe", pode ser considerada, em certa medida, como precursora da teoria do valor-trabalho, desenvolvida por Smith e Ricardo, economistas do liberalismo clássico.

O contrato social

O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros.

É a necessidade de superar esses inconvenientes que, segundo Locke, leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de judicatura e da força concentrada da comunidade. Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras.

O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã.

Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário.

A sociedade política ou civil

Assim, a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil (Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil.

Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo. Na escolha do governo, a unanimidade do contrato originário cede lugar ao princípio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria.

De acordo com a teoria aristotélica das formas de governo, a comunidade pode ser governada por um, por poucos ou por muitos, conforme escolha a monarquia, a oligarquia ou a democracia. A escolha pode recair ainda sobre o governo misto, corno o existente na Inglaterra após a Revolução Gloriosa, onde a Coroa representava o princípio monárquico, a Câmara dos Lordes o oligárquico e a Câmara dos Comuns o democrático.
Na concepção de Locke, porém, qualquer que seja a sua forma, "todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade".

Definida a forma de governo, cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke, conferindo-lhe urna superioridade sobre os demais poderes, denomina de poder supremo. Ao legislativo se subordinam tanto o poder executivo, confiado ao príncipe, como o poder federativo, encarregado das relações exteriores (guerra, paz, alianças e tratados). Existe uma clara separação entre o poder legislativo, de um lado, e os poderes executivo e federativo, de outro lado, os dois últimos podendo, inclusive, ser exercidos pelo mesmo magistrado,

Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamentos do estado civil.


O direito de resistência

No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afirma que, quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito, visa não o interesse próprio e não o bem público ou comum.

Com efeito, a violação deliberada e sistemática da propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania.

O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser decidido pela força.

Segundo Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do governo rebelde. O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira.

A doutrina do direito de resistência não era recente e sua origem remontava às guerras de religião, quando os escritores políticos calvinistas, denominados monarcomaci, conclamavam o povo a resistir aos atos ilegais dos príncipes católicos. Resgatada e revalorizada por Locke no Segundo tratado, a doutrina do direito de resistência transformou-se no fermento das revoluções liberais que eclodiram depois na Europa e na América.

Conclusão
Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal.

Norberto Bobbio, resumindo os aspectos mais relevantes do pensamento lockiano, afirma:

"Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal." (Direito e Estado no pensamento de Kant, UNB, 1984, p. 41.)

Locke forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideológica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar inglesa.

Locke influenciou a revolução norte-americana, onde a declaração de independência foi redigida e a guerra de libertação foi travada em termos de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico.

Locke influenciou ainda os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão.

E, finalmente, com a Grande Revolução as idéias "inglesas", que haviam atravessado o canal da Mancha e estabelecido uma cabeça de ponte no continente, transformaram-se nas idéias "francesas" e se difundiram por todo o Ocidente.

sábado, junho 03, 2006

Relações Hemisféricas e a Política Regional: uma disputa Mercosul e Estados Unidos?

Transcrição de participação em seminário realizado no CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), em 08/1998.


A vantagem de falar por último – ou será a desvantagem? - está no fato de que geralmente sobra muito pouco a acrescentar àquilo que já foi dito nas exposições anteriores. Isto é particularmente verdadeiro no meu caso, uma vez que as preleções dos expositores que me antecederam foram extremamente lúcidas, ricas e esclarecedoras. Mas gostaria de aproveitar a oportunidade para demarcar a minha posição e acrescentar talvez algumas coisas, começando por fixar o marco teórico para a abordagem que pretendo realizar do tema "Relações Hemisféricas e a Política Regional: uma disputa Mercosul e Estados Unidos?"

Parece-me que Raymond Aron andou muito bem quando, ao analisar o conceito de Sociedade Internacional ou Mundial, distinguiu claramente os níveis das relações interestatais, das relações transnacionais e das relações supranacionais. Aron demarcou assim, no plano teórico, uma linha divisória para efeitos de análise entre, de um lado, o sistema de Estados, e, de outro lado, o sistema econômico ou mercado mundial. No sistema de Estados distinguiu também entre a ação do diploma e a do soldado, isto é, entre as relações diplomáticas e as relações estratégicas. Nessa sua definição de relações internacionais, Aron também fixou vertentes: de um lado, a das relações diplomáticas, de outro, a das relações estratégicas.

No pós-guerra fria continua existindo um sistema de Estados que funciona de forma anárquica, hierárquica e oligopolística. Em sua interface, existe também um mercado mundial que está passando por um processo de integração com a formação dos megablocos econômicos regionais. Nessa Nova Ordem Mundial, ao lado da globalização comercial e financeira e da intensificação das relações diplomáticas, não podemos nos esquecer que as relações estratégicas permanecem e são da maior relevância e atualidade. Com isso, mapeamos um pouco o terreno acidentado onde devemos nos movimentar com cautela.

Na realidade, quando falamos de Mercosul e de Estados Unidos, nós estamos pensando no primeiro como uma união aduaneira formada por um mercado conjunto de 220 milhões de pessoas e um PIB de 1 trilhão de dólares; assim como no segundo como o país-líder do NAFTA, uma zona de livre-comércio que representa um PIB de 7 trilhões de dólares e um mercado potencial de 385 milhões de consumidores. A proposta norte-americana de criação da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas - é de promover uma zona de livre-comércio hemisférica, que se estenderia do Alasca à Patagônia. Integração hemisférica, no interior da qual o Mercosul estaria completamente diluído. Antes de aceitar tal proposta, ou de tratá-la como um fato consumado e irreversível como pretendem alguns, precisamos adotar uma atitude de prudência - que é a suprema virtude política - e calcular racionalmente os custos e benefícios.

Perguntar não ofende: que hipotéticos benefícios econômicos compensariam os efetivos custos políticos existentes em uma suposta adesão brasileira à ALCA? Essa é uma questão fundamental, pois é preciso considerar que a ALCA nasceria sob o signo do gigantesco potencial econômico, tecnológico, científico, comercial, financeiro, político, ideológico e estratégico dos Estados Unidos, que, para repetir o óbvio, é atualmente a única superpotência global multidimensional do planeta e exerce uma política de poder incontrastável no continente americano. Em suma, estaríamos participando de um processo de interdependência desproporcionalmente assimétrico, com todas as conseqüências que essa assimetria poderia trazer para a autonomia da política doméstica e internacional brasileiras.

Não vamos nos iludir. A diluição do Mercosul em uma Área de Livre Comércio das Américas, poderá até trazer certos benefícios econômicos para o Brasil. Mas qual será o custo político dessa adesão à ALCA em termos dos entraves, dos limites e dos cerceamentos que podem advir dessa integração intra-hemisférica para a política externa extra-hemisférica do Estado brasileiro? Não seria mais interessante pensar na criação de uma área de livre comércio transatlântica, uma espécie de triângulo cujos vértices seriam formados pelo NAFTA, o Mercosul e a União Européia (EU), com a qual o Brasil mantém atualmente significativas relações econômicas? Nessa área de livre comércio transatlântica o Brasil continuaria como membro integrante do Mercosul, garantiria ao mesmo tempo maior liberdade e um espaço de manobra mais amplo para sua política internacional.

Não podemos nos esquecer que, além dos processos de integração, de formação dos megablocos e de globalização econômica, o país se defrontará em médio prazo com o problema da provável ampliação do número de membros que integram o Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). Ora, sem a menor sombra de dúvida, essa é uma questão da maior importância para a agenda da política externa brasileira. Nós sabemos que, com toda a certeza, a Alemanha e o Japão serão os novos sócios desse Conselho de Segurança ampliado. Esse Conselho poderá ter também como participantes um país da Ásia do Sul, um da África e outro da América Latina. O Brasil é visto como um candidato natural a ocupar uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, ao lado de outros pretendentes latino-americanos como a Argentina e o México.

O que pergunto é: em que medida, na atual conjuntura, a adesão a uma área de livre comércio nas Américas, a despeito de seus possíveis benefícios econômicos, seria um fator que contribuiria positiva ou negativamente para a reivindicação do Brasil de vir a integrar futuramente esse Conselho de Segurança ampliado das Nações Unidas?

Durante o período da guerra fria o mundo estava dividido verticalmente pela confrontação Leste-Oeste e horizontalmente pela segmentação Norte-Sul, sendo que a maioria dos países se integrava ao sistema internacional como aliados dos Estados Unidos ou da União Soviética ou, ainda, como neutralistas do Terceiro Mundo. Com o fim da guerra fria e o surgimento da nova ordem mundial, a ênfase que até então tinha sido dada às questões estratégicas e militares foi deslocada para as questões econômicas, científicas e tecnológicas, bem como para os processos de integração dos megablocos regionais. Isso não significa, porém, que estejamos dando os primeiros passos em direção a uma federação de repúblicas livres, para desfrutar finalmente da paz perpétua kantiana. Por outro lado, não estamos vivendo também nenhuma situação que se aproxime da configuração de império universal hobbesiano. Portanto, parece muito claro - a despeito do horror que isso possa causar a alguns espíritos piedosos - que os Estados nacionais continuam sendo, senão os únicos, ainda os principais atores das relações internacionais. O atual sistema internacional continua sendo, como todos os outros desde a Paz de Westfália (1648), um sistema de Estados. Não é nem uma federação de repúblicas, nem um império universal.

Como foi dito anteriormente, esse sistema interestal é um sistema anárquico, ainda semelhante ao estado de natureza hobbesiana, onde a ausência da guerra não significa paz perpétua, mas somente uma trégua temporária, que poderá ser mais ou menos longa. Até onde se pode perceber, esse sistema internacional continua hierárquico, formado por uma superpotência, algumas grandes potências, diversas potências médias e uma imensa massa de pequenos países que são hegemonizados pelas potências maiores. Portanto, o sistema internacional, além de anárquico e hierárquico, permanece também oligopolístico e as “regras do jogo” para manutenção da ordem e da paz continuam sendo ditadas pelo seleto clube das potências.

Usando categorias aronianas, é preciso ressaltar que a integração em curso está ocorrendo no plano do mercado mundial ou do sistema econômico da Sociedade Internacional. No plano do sistema de Estados, as grandes decisões são tomadas ainda, em última instância, pelos detentores do monopólio da violência legítima, que continuam dialogando entre si “à sombra da guerra”. Em outras palavras, nas relações interestatais permanece em vigência a tradicional política de poder.

O que mudou, na realidade, foi a natureza da política de poder. Durante a guerra fria a política de poder era feita com base em investimentos militares convencionais e estratégicos, pois esta era a ênfase da política de contenção e do “equilíbrio do terror”. Atualmente, a política de poder do pós-guerra fria deslocou sua ênfase para questões econômicas e tecnológicas, comerciais e financeiras. Embora não seja o único, a economia tornou-se hoje talvez o principal vetor do conceito de poder. É por isso que, quando falamos de integração regional, estamos falando de política de poder e de quem tem maior capacidade de competição econômica.

É possível que em uma área de livre-comércio das Américas a política de poder seja ditada por aquele país cujas empresas tiverem mais capital disponível, melhor aperfeiçoamento tecnológico e maior nível de competitividade. Se o livre comércio for encaminhado pela “via rápida” pode fazer com que os Estados que não atingirem um determinado estágio de desenvolvimento, ou que não se prepararem previamente para esta competição, passem por um sucateamento de seu parque industrial. Isso significará um alto custo para vários países e benefício para alguns poucos, isto é, um caso típico de “interdependência assimétrica”.

Portanto, nós estamos em uma situação em que as empresas de médio e pequeno porte, os sujeitos coletivos da sociedade civil e os segmentos intelectuais não vinculados ao Estado, continuam tendo um papel periférico e secundário no processo de integração. Essa integração tem sido comandada, desde o início até o presente momento pelos organismos governamentais. É sobre a égide e o comando dos Estados que tem se realizado até agora o processo de integração. Embora não sejam os únicos agentes, os Estados são efetivamente os atores principais e decisivos desse processo. São eles, enfim, que dão sempre a última palavra.

Em síntese, os Estado continuam fazendo política de poder, só que na atual conjuntura a ênfase se deslocou do plano estratégico e militar para o plano econômico e tecnológico. No pós-guerra fria, os Estados procuram acumular um diferencial de poder econômico que é projetado para o plano internacional, como aconteceu durante a guerra fria com o poder militar. E é esse diferencial de poder ou a falta dele que dá, hoje, a alguns Estados a posição de potência hegemônica e a outros a condição de unidade política subordinada.

Além disso, as grandes potências fazem política visando sua segurança, pois, evidentemente, nenhuma delas abre mão do que considera essencial à segurança nacional. Todo processo de integração, seja aqui no Mercosul, seja lá na União Européia, não pode deixar de levar em consideração as questões relativas à segurança. O Reino Unido, por exemplo, reluta em entregar na mesa de negociação aquilo que neste século foram duas vezes à guerra para evitar: a hegemonia da Alemanha sobre a Europa e a transformação das Ilhas Britânicas em um satélite da potência que controlar o Velho Continente.

Portanto, o Estado brasileiro tem condições de desenvolver uma política de poder e não pode descuidar de sua segurança nacional, o que significa preservar sua integridade territorial, seu patrimônio material, seus valores culturais e sua independência política frente às grandes potências. Para tanto, o Brasil deve ter como norte o que considera ser seus legítimos interesses nacionais. Deve participar, sem dúvida alguma, do processo de integração regional, mas estar atento às condições sob as quais o mesmo está ocorrendo. Se é para o Brasil caminhar em direção a uma integração assimétrica e subordinada, então é melhor parar e refletir um pouco. Porque não é do interesse nacional realizar um tipo de integração subordinada, da qual resulte o sucateamento do parque industrial nativo ou mesquinhos benefícios econômicos à custa de concessões políticas, que um país independente e soberano jamais pode barganhar.

Para encerrar, quero reafirmar aqui minha profissão de fé no realismo político de tradição maquiavélico-hobbesiana. A despeito do que possam pensar alguns “idealistas” e autodenominados “científicos”, tenho a convicção intelectual de que o realismo clássico não é “cachorro morto” e não perdeu sua força teórica com o fim da guerra fria. Ao contrário, o realismo clássico continua um paradigma válido e atual para a compreensão do mundo do pós-guerra fria. E uma postura realista talvez nos ajude a compreender melhor seja o processo de globalização no mundo atual, seja os processos de integração regional, que, no caso da ALCA ou do Mercosul, devem ser analisados por nós, cidadãos e súditos do Estado brasileiro, pela ótica de sua soberania e independência políticas, assim como de sua segurança e interesse nacionais.