sábado, junho 03, 2006

Relações Hemisféricas e a Política Regional: uma disputa Mercosul e Estados Unidos?

Transcrição de participação em seminário realizado no CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), em 08/1998.


A vantagem de falar por último – ou será a desvantagem? - está no fato de que geralmente sobra muito pouco a acrescentar àquilo que já foi dito nas exposições anteriores. Isto é particularmente verdadeiro no meu caso, uma vez que as preleções dos expositores que me antecederam foram extremamente lúcidas, ricas e esclarecedoras. Mas gostaria de aproveitar a oportunidade para demarcar a minha posição e acrescentar talvez algumas coisas, começando por fixar o marco teórico para a abordagem que pretendo realizar do tema "Relações Hemisféricas e a Política Regional: uma disputa Mercosul e Estados Unidos?"

Parece-me que Raymond Aron andou muito bem quando, ao analisar o conceito de Sociedade Internacional ou Mundial, distinguiu claramente os níveis das relações interestatais, das relações transnacionais e das relações supranacionais. Aron demarcou assim, no plano teórico, uma linha divisória para efeitos de análise entre, de um lado, o sistema de Estados, e, de outro lado, o sistema econômico ou mercado mundial. No sistema de Estados distinguiu também entre a ação do diploma e a do soldado, isto é, entre as relações diplomáticas e as relações estratégicas. Nessa sua definição de relações internacionais, Aron também fixou vertentes: de um lado, a das relações diplomáticas, de outro, a das relações estratégicas.

No pós-guerra fria continua existindo um sistema de Estados que funciona de forma anárquica, hierárquica e oligopolística. Em sua interface, existe também um mercado mundial que está passando por um processo de integração com a formação dos megablocos econômicos regionais. Nessa Nova Ordem Mundial, ao lado da globalização comercial e financeira e da intensificação das relações diplomáticas, não podemos nos esquecer que as relações estratégicas permanecem e são da maior relevância e atualidade. Com isso, mapeamos um pouco o terreno acidentado onde devemos nos movimentar com cautela.

Na realidade, quando falamos de Mercosul e de Estados Unidos, nós estamos pensando no primeiro como uma união aduaneira formada por um mercado conjunto de 220 milhões de pessoas e um PIB de 1 trilhão de dólares; assim como no segundo como o país-líder do NAFTA, uma zona de livre-comércio que representa um PIB de 7 trilhões de dólares e um mercado potencial de 385 milhões de consumidores. A proposta norte-americana de criação da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas - é de promover uma zona de livre-comércio hemisférica, que se estenderia do Alasca à Patagônia. Integração hemisférica, no interior da qual o Mercosul estaria completamente diluído. Antes de aceitar tal proposta, ou de tratá-la como um fato consumado e irreversível como pretendem alguns, precisamos adotar uma atitude de prudência - que é a suprema virtude política - e calcular racionalmente os custos e benefícios.

Perguntar não ofende: que hipotéticos benefícios econômicos compensariam os efetivos custos políticos existentes em uma suposta adesão brasileira à ALCA? Essa é uma questão fundamental, pois é preciso considerar que a ALCA nasceria sob o signo do gigantesco potencial econômico, tecnológico, científico, comercial, financeiro, político, ideológico e estratégico dos Estados Unidos, que, para repetir o óbvio, é atualmente a única superpotência global multidimensional do planeta e exerce uma política de poder incontrastável no continente americano. Em suma, estaríamos participando de um processo de interdependência desproporcionalmente assimétrico, com todas as conseqüências que essa assimetria poderia trazer para a autonomia da política doméstica e internacional brasileiras.

Não vamos nos iludir. A diluição do Mercosul em uma Área de Livre Comércio das Américas, poderá até trazer certos benefícios econômicos para o Brasil. Mas qual será o custo político dessa adesão à ALCA em termos dos entraves, dos limites e dos cerceamentos que podem advir dessa integração intra-hemisférica para a política externa extra-hemisférica do Estado brasileiro? Não seria mais interessante pensar na criação de uma área de livre comércio transatlântica, uma espécie de triângulo cujos vértices seriam formados pelo NAFTA, o Mercosul e a União Européia (EU), com a qual o Brasil mantém atualmente significativas relações econômicas? Nessa área de livre comércio transatlântica o Brasil continuaria como membro integrante do Mercosul, garantiria ao mesmo tempo maior liberdade e um espaço de manobra mais amplo para sua política internacional.

Não podemos nos esquecer que, além dos processos de integração, de formação dos megablocos e de globalização econômica, o país se defrontará em médio prazo com o problema da provável ampliação do número de membros que integram o Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU). Ora, sem a menor sombra de dúvida, essa é uma questão da maior importância para a agenda da política externa brasileira. Nós sabemos que, com toda a certeza, a Alemanha e o Japão serão os novos sócios desse Conselho de Segurança ampliado. Esse Conselho poderá ter também como participantes um país da Ásia do Sul, um da África e outro da América Latina. O Brasil é visto como um candidato natural a ocupar uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, ao lado de outros pretendentes latino-americanos como a Argentina e o México.

O que pergunto é: em que medida, na atual conjuntura, a adesão a uma área de livre comércio nas Américas, a despeito de seus possíveis benefícios econômicos, seria um fator que contribuiria positiva ou negativamente para a reivindicação do Brasil de vir a integrar futuramente esse Conselho de Segurança ampliado das Nações Unidas?

Durante o período da guerra fria o mundo estava dividido verticalmente pela confrontação Leste-Oeste e horizontalmente pela segmentação Norte-Sul, sendo que a maioria dos países se integrava ao sistema internacional como aliados dos Estados Unidos ou da União Soviética ou, ainda, como neutralistas do Terceiro Mundo. Com o fim da guerra fria e o surgimento da nova ordem mundial, a ênfase que até então tinha sido dada às questões estratégicas e militares foi deslocada para as questões econômicas, científicas e tecnológicas, bem como para os processos de integração dos megablocos regionais. Isso não significa, porém, que estejamos dando os primeiros passos em direção a uma federação de repúblicas livres, para desfrutar finalmente da paz perpétua kantiana. Por outro lado, não estamos vivendo também nenhuma situação que se aproxime da configuração de império universal hobbesiano. Portanto, parece muito claro - a despeito do horror que isso possa causar a alguns espíritos piedosos - que os Estados nacionais continuam sendo, senão os únicos, ainda os principais atores das relações internacionais. O atual sistema internacional continua sendo, como todos os outros desde a Paz de Westfália (1648), um sistema de Estados. Não é nem uma federação de repúblicas, nem um império universal.

Como foi dito anteriormente, esse sistema interestal é um sistema anárquico, ainda semelhante ao estado de natureza hobbesiana, onde a ausência da guerra não significa paz perpétua, mas somente uma trégua temporária, que poderá ser mais ou menos longa. Até onde se pode perceber, esse sistema internacional continua hierárquico, formado por uma superpotência, algumas grandes potências, diversas potências médias e uma imensa massa de pequenos países que são hegemonizados pelas potências maiores. Portanto, o sistema internacional, além de anárquico e hierárquico, permanece também oligopolístico e as “regras do jogo” para manutenção da ordem e da paz continuam sendo ditadas pelo seleto clube das potências.

Usando categorias aronianas, é preciso ressaltar que a integração em curso está ocorrendo no plano do mercado mundial ou do sistema econômico da Sociedade Internacional. No plano do sistema de Estados, as grandes decisões são tomadas ainda, em última instância, pelos detentores do monopólio da violência legítima, que continuam dialogando entre si “à sombra da guerra”. Em outras palavras, nas relações interestatais permanece em vigência a tradicional política de poder.

O que mudou, na realidade, foi a natureza da política de poder. Durante a guerra fria a política de poder era feita com base em investimentos militares convencionais e estratégicos, pois esta era a ênfase da política de contenção e do “equilíbrio do terror”. Atualmente, a política de poder do pós-guerra fria deslocou sua ênfase para questões econômicas e tecnológicas, comerciais e financeiras. Embora não seja o único, a economia tornou-se hoje talvez o principal vetor do conceito de poder. É por isso que, quando falamos de integração regional, estamos falando de política de poder e de quem tem maior capacidade de competição econômica.

É possível que em uma área de livre-comércio das Américas a política de poder seja ditada por aquele país cujas empresas tiverem mais capital disponível, melhor aperfeiçoamento tecnológico e maior nível de competitividade. Se o livre comércio for encaminhado pela “via rápida” pode fazer com que os Estados que não atingirem um determinado estágio de desenvolvimento, ou que não se prepararem previamente para esta competição, passem por um sucateamento de seu parque industrial. Isso significará um alto custo para vários países e benefício para alguns poucos, isto é, um caso típico de “interdependência assimétrica”.

Portanto, nós estamos em uma situação em que as empresas de médio e pequeno porte, os sujeitos coletivos da sociedade civil e os segmentos intelectuais não vinculados ao Estado, continuam tendo um papel periférico e secundário no processo de integração. Essa integração tem sido comandada, desde o início até o presente momento pelos organismos governamentais. É sobre a égide e o comando dos Estados que tem se realizado até agora o processo de integração. Embora não sejam os únicos agentes, os Estados são efetivamente os atores principais e decisivos desse processo. São eles, enfim, que dão sempre a última palavra.

Em síntese, os Estado continuam fazendo política de poder, só que na atual conjuntura a ênfase se deslocou do plano estratégico e militar para o plano econômico e tecnológico. No pós-guerra fria, os Estados procuram acumular um diferencial de poder econômico que é projetado para o plano internacional, como aconteceu durante a guerra fria com o poder militar. E é esse diferencial de poder ou a falta dele que dá, hoje, a alguns Estados a posição de potência hegemônica e a outros a condição de unidade política subordinada.

Além disso, as grandes potências fazem política visando sua segurança, pois, evidentemente, nenhuma delas abre mão do que considera essencial à segurança nacional. Todo processo de integração, seja aqui no Mercosul, seja lá na União Européia, não pode deixar de levar em consideração as questões relativas à segurança. O Reino Unido, por exemplo, reluta em entregar na mesa de negociação aquilo que neste século foram duas vezes à guerra para evitar: a hegemonia da Alemanha sobre a Europa e a transformação das Ilhas Britânicas em um satélite da potência que controlar o Velho Continente.

Portanto, o Estado brasileiro tem condições de desenvolver uma política de poder e não pode descuidar de sua segurança nacional, o que significa preservar sua integridade territorial, seu patrimônio material, seus valores culturais e sua independência política frente às grandes potências. Para tanto, o Brasil deve ter como norte o que considera ser seus legítimos interesses nacionais. Deve participar, sem dúvida alguma, do processo de integração regional, mas estar atento às condições sob as quais o mesmo está ocorrendo. Se é para o Brasil caminhar em direção a uma integração assimétrica e subordinada, então é melhor parar e refletir um pouco. Porque não é do interesse nacional realizar um tipo de integração subordinada, da qual resulte o sucateamento do parque industrial nativo ou mesquinhos benefícios econômicos à custa de concessões políticas, que um país independente e soberano jamais pode barganhar.

Para encerrar, quero reafirmar aqui minha profissão de fé no realismo político de tradição maquiavélico-hobbesiana. A despeito do que possam pensar alguns “idealistas” e autodenominados “científicos”, tenho a convicção intelectual de que o realismo clássico não é “cachorro morto” e não perdeu sua força teórica com o fim da guerra fria. Ao contrário, o realismo clássico continua um paradigma válido e atual para a compreensão do mundo do pós-guerra fria. E uma postura realista talvez nos ajude a compreender melhor seja o processo de globalização no mundo atual, seja os processos de integração regional, que, no caso da ALCA ou do Mercosul, devem ser analisados por nós, cidadãos e súditos do Estado brasileiro, pela ótica de sua soberania e independência políticas, assim como de sua segurança e interesse nacionais.

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